Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, de Julieta Monginho, publicado pela Porto Editora, assinala os 25 anos de carreira literária de Julieta Monginho e, depois dos premiados A Terceira Mãee Um Muro no Meio do Caminho, confirma a voz original da autora.
Numa contagem decrescente, ao longo de 20 dias, uma criança empreende um plano de fuga e pede ao leitor, que considera o irmão que nunca teve, que não o denuncie. O dia Zero, em que se encerra a narrativa e se anuncia um mundo novo, deixa-nos em suspenso, e talvez por não ficar completamente encerrado se explique os «Vinte Dias e Meio» do título. Um romance que se lê de uma assentada, ainda que no início nos sintamos a tactear entre a pluralidade de histórias e a novidade da linguagem da autora. No tempo medido por Leo, relatado na primeira pessoa, conflui ainda o tempo de Mário, o pai, narrado na 3.ª pessoa e de forma alternada. Com direito a menos dias, a narrativa é ainda pontuada, ocasionalmente, pela voz de Marten, o companheiro de Mário. A mãe, curiosamente, não tem direito a voz nesta história de uma família disfuncional e pouco convencional, ainda que Leo nos fale repetidamente dela, e de como a sua natureza se divide em duas: a mãe e a eãm.
«A mãe são duas, uma de trás para a frente, outra da frente para trás. Uma enche o armário com cereais de chocolate, a outra esquece-se da hora das refeições e fica a olhar pela janela até adormecer» (p. 9).
A frase inaugural do romance confirma a importância simbólica da inversão neste título explica-nos na verdade o motivo do desejo de fuga de Leo, cansado de adultos ambíguos, insatisfeitos, perdidos na vida e no desejo: «Uma família granizo, pedras a bater umas contra as outras» (p. 25). Mário, que ganha no romance uma centralidade talvez maior que a de Leo, e talvez daí a perspetivação da personagem numa terceira pessoa, mais objectiva, tem também a sua vida do avesso, como iremos percebendo ao longo deste romance construído ao jeito de um puzzleou Lego como aqueles com que Leo se entretinha, antes de passar a um puzzlemais sofisticado…
Mário era, até há 3 dias, segurança no museu Rijksmuseum de Amsterdão, que Leo visita desde bebé e onde gosta de se perder. Mas Mário perdeu o trabalho no dia em que perdeu a cabeça e pontapeou uma vítima por um delito (imaginado?) numa das salas do museu, «episódio» que adquire segundo ele «proporções desmesuradas» nas redes sociais e na televisão (p. 20) e o reenvia até à aldeia alentejana onde reencontra a mãe demente e procura lidar com as recordações de um pai abusador que o humilhava publicamente por ser homossexual. Mário parece ser portanto uma criança como Leo em ponto grande, fisicamente incapaz de lidar com a sua própria força, e um turbilhão de emoções por resolver. Estabelece-se, paradoxalmente, uma relação curiosa entre o desconforto de Leo na sua pele, na sua vida, da mesma forma que Mário continua a braços com o passado; e enquanto Leo quer fugir de casa, Mário regressa a casa para poder resolver-se.
Logo nas primeiras páginas do romance, a autora consegue a proeza de nos fazer ver o mundo pelos olhos de uma criança, fazendo deste livro uma moldura para o mundo, e o leitor compactua com o plano de Leo (que nos pede conselhos recorrentemente) ao mesmo tempo que se situa espacial e temporalmente. Mas a actualidade dos tempos é perpassada por uma ambiência fantástica.
Ao longo do romance, logo desde as primeiras páginas, personagens de carne e osso são colocadas ao lado de figuras de quadros célebres do Rijksmuseum: Mário sonha com Rembrandt e Leo fala mesmo com ele; a Mona Lisa ensinou Leo a sorrir para que o deixem em paz; Leo encontrou o seu cão Puck, saído de um dos quadros, e vê na Leiteira de Vermeer uma amiga, quase uma figura maternal, a verter infindamente o seu leite. Leo (abreviatura de Leonardo…) é uma criança como as outras, tão capaz de se perder nos seus jogos de computador como nos quadros do museu, mas é particularmente nas pinturas dos mestres que encontra o seu mundo imaginário: «Os quadros, as Figuras dentro dos quadros, acolhiam-no como uma grande família, unida para sempre.» (p. 14) Igualmente fantástico é o plano congeminado por Leo, que passa por construir uma máscara com os traços das Figuras: «Uma pele de cera desenhada, por cima da minha pele, uma espécie de tatuagem provisória. Assim vai ser mais fácil fintar as câmaras de vigilância e deixar para trás estes doidos.» (p. 17) Também Marten, na pressão de conseguir escrever o seu romance, conversa com Virginia Woolf. Além da ambiência fantástica, o romance está repleto da importância da arte, nas suas mais variadas formas: da pintura à música, com versos e árias; e as lendas «do tempo em que só havia o antigamente e o depois» (p. 117) ou as «histórias de moleiros e vagabundos e piratas» (p. 164).
Por fim, quer o mundo real, quer o mundo das Figuras fica igualmente ameaçado quando, conforme chegamos ao dia 0 de Leo, o tempo retrocede igualmente até a um episódio bíblico, carregado de simbologia: «Passado, presente e futuro que houvesse, viajavam no caudal de um rio sem margens onde a vida se ordenasse.» (p. 134)
Mário faz a sua travessia marítima de volta a Amesterdão, agora «uma cidade cortada ao meio pelas águas», «uma cidade da cintura para cima» (p. 129)
A última frase do romance confirma a esperança de que a humanidade se reconstrua num novo mundo, onde Leo não volte a pensar em fugir de casa da mãe.
Julieta Monginho nasceu em Lisboa, em 1958. É escritora e magistrada do Ministério Público. A Porto Editora também publicou Um Muro no Meio do Caminho(2018), vencedor do Prémio Fernando Namora e Prémio PEN Clube Português em 2019, e reeditou A Terceira Mãe(2008), Grande Prémio de Romance e Novela da APE.