Na Grécia antiga, de 4 em 4 anos, as populações suspendiam as hostilidades para poderem deslocar-se a Olímpia, cidade-estado situada a noroeste do Peloponeso, para competir e assistir aos torneios em honra do pai de todos os deuses. Eram as “Tréguas de Zeus”. Este costume teve início em 776 a.C. e incluía não apenas torneios desportivos, mas também competições de oratória, música e outras artes.
Porém, após 293 Olimpíadas, em 393 d.C, o imperador Teodósio I de Milão decreta o seu enceramento. Em 426, Teodósio II ordena a demolição dos edifícios sagrados da cidade de Olímpia. A estátua de Zeus é levada para Constantinopla e aí é destruída pelo fogo iniciando-se um longo interregno.
Os Jogos Olímpicos renascem graças ao trabalho árduo do barão francês Pierre Coubertin. Em 1888 funda o Comité para a Propagação dos Exercícios Físicos na Educação. Incansável, escreve numerosos livros, artigos, e dá conferências. Em 1894 tem lugar na Sorbonne um congresso internacional em que Coubertin é aclamado pela sua ideia de ressuscitar esta magnânima festa do desporto. É neste ano que se elege o primeiro Comité Olímpico Internacional, que se cria o emblema dos cinco anéis que representam todos os países dos cinco continentes, e a divisa que condensa os anseios e ideais de todos os desportistas que tomam parte nesta competição: Citius, Altius, Fortius(mais rápido, mais alto, mais forte). Finalmente, em 1896, realizar-se-ão em Atenas os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna. Nestes 124 anos Zeus não deu tréguas em três ocasiões, suspendendo-se os jogos em 1916, 1940 e 1944, por ocasião das duas grandes guerra mundiais.
Em 2020 os jogos são, pela primeira vez na história recente, adiados. O fim das hostilidades não dependeu da vontade humana. O coronavírus espalhou-se pelo planeta em mutações sucessivas e a pandemia não nos deu tréguas!
A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos 2020 acontece, então, em 2021, tratando-se da mais melancólica e anticlimática de que alguma vez me recordo. Nem mesmo as advertências de que se trataria de um evento “solene” sob o tema “recuperação e reconstrução”, tendo em mente o terramoto e o tsunamide 2011 e a actual pandemia, se adivinhava tamanha tristeza.
Esta cerimónia costuma ser um momento grandioso. Os aspectos protocolares repetem-se: o hastear das bandeiras, o desfile dos atletas participantes, o transporte da tocha olímpica que finalmente permanecerá acesa no estádio. Constitui também uma oportunidade excelente para a nação anfitriã surpreender o mundo com um espectáculo que exiba a sua história e o melhor da sua arte.
Congratulamo-nos com o facto de, em Tokyo, se ter expressado uma imensa gratidão pelos profissionais de saúde, pela inclusão constante dos atletas para-olímpicos, pela luta pela igualdade de género tão bem exemplificada nos porta-estandartes. Aliás, estão de parabéns os nossos atletas Telma Monteiro e Nelson Évora que, empunhando a bandeira Portuguesa e saltando de entusiasmo, foram a quase única nota de alegria presente neste evento.
Apesar do lema “separados mas nunca sozinhos” aquilo que transpareceu nesta celebração foi um enorme isolamento, angústia e vazio; demasiado espaço vazio! Como se não bastasse a arrepiante ausência de público, o próprio palco se transformou num catalisador de desalento. Por muito que o vazio seja apanágio da estética japonesa, a preponderância que aqui se lhe deu foi excessiva.
Os ecrãs televisivos vomitaram a imagem insistente e entediante de uma mulher a correr sozinha numa passadeira —como se não bastasse o facto de tantos de nós o termos feito durante o confinamento e de não precisarmos de ser desse facto recordados. Noutro momento, Mirai Moriyama, bailarino de dança Butô envolto em vestes brancas, evocando uma alma penada, levantou-se virtuosamente do pó para ao pó regressar. Ao que se seguiu um minuto de silêncio por todos aqueles que a pandemia, o terramoto e o tsunami levaram. Mais tarde, evocando a obra da artista plástica Chiharu Shiota, bailarinos de branco, cujas caras também se encontravam embrulhadas numa rede da mesma cor, realizaram uma coreografia utilizando uma corda elástica vermelha, que supostamente pretenderia transmitir o funcionamento do interior do corpo: sangue, nervos, músculos, tendões, órgãos—numa perfeita monotonia, fealdade, e ausência de graça. Enfim, tudo falhou por que demasiado literal.
Aristótles nesse magnífico tratado de estética que se intitula Poética, faz a seguinte pergunta: Como pode um quadro onde estão representados cadáveres produzir prazer? Esta é a pergunta irredutível que inaugura a questão estética por excelência. Como quase sempre acontece com as perguntas originárias, nela própria está contida a resposta. Embora os cadáveres na vida real não produzam prazer, é a forma como estão representados no quadro que veicula esse sentimento. Portanto, o prazer estético não reside no conteúdo —no motivo, no assunto, no referente —mas sim na forma como esse conteúdo está representado. Em termos kantianos diríamos que o prazer estético reside naforma da representação.
Ora foi precisamente esta forma da representaçãoque falhou sucessivamente nesta cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tokyo 2020, em 2021. As intenções foram muito nobres mas faltou-lhes a “artisticidade”. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, seguindo a esteira kantiana, muito insistiu neste conceito no seu ensaio A Desumanização da Arte. Ortega y Gasset pretendia um novo modo de sentir a existência —refinadoeelegante— um modo que implicaria um distanciamento e um trabalho sobre a matéria prima inicial, em vez da simples cópia ou da empatia por arrastamento emotivo. Ora o que aconteceu na grande maioria das propostas estéticas da cerimónia de abertura destes Jogos Olímpicos foi precisamente isso: a cópia simples e o apelo ao sentimentalismo fácil. O espectadordo séc. XXI, desejavelmente culto e inteligente,regozijar-se-ia na artisticidadeda obra de arte e não no seu conteúdo, realizaria autenticamente a experiência estética.Pouca oportunidade houve para o fazer nesta cerimónia.
Existiu, no entanto, uma honrosa excepção que para mim constituiu o ponto alto do evento em termos artísticos: a pantomima dos pictogramas. Interpretada por Hiro-Pon, um artista japonês do premiado grupo de comédia performática Gamarjobat, apoiado por Masa e Hitoshi, também eles comediantes japoneses. Numa dança muda, os pictogramas adquiriram vida transformando-se sucessivamente uns nos outros numa coreografia densae vigorosa. Os pictogramas das novas modalidades olímpicas foram pela primeira vez apresentados: skate, surf, beisebol, karatée escalada desportiva. A performance surpreendeu e encantou! Vale a pena recordar que os pictogramas foram introduzidos pela primeira vez precisamente nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. Os designersde então criaram estas figuras estilizadas que funcionaram como símbolos não verbais, transcendendo as barreiras da linguagem. Os pictogramas são capazes de comunicar informação de forma rápida, rigorosa e inequívoca. Hoje em dia muitos destes símbolos são utilizados universalmente. Estejamos, pois, agradecidos.
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico