Tanta gente Mariana é uma obra literária de Maria Judite de Carvalho escrita em 1959. As palavras deste texto correm para a homenagear.
Este conto retrata a vida e pensamento de Mariana Toledo, que aos 15 anos está no seu quarto e o seu pai ouve uns barulhos saídos de lá e vai ao seu encontro. E pergunta-lhe “Que tens Mariana?” Ela responde a choramingar “Estou só pai”. E o pai diz-lhe “Todos estamos sozinhos Mariana, sozinhos e muita gente à nossa volta, tanta gente Mariana”. Este é talvez o momento do conto que acaba por lhe dar o título. O conto acaba por ser um virtuoso ensaio sobre a solidão.
Marta Pessoa realizou um filme este ano intitulado “A donzela guerreira”, que é inspirado na vida e obra das escritoras Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho. Marta referiu que “quis pegar nas personagens da Irene Lisboa e nos percursos de Maria Judite”, para criar um filme que segundo Manuel Halpern “dá visibilidade a um universo feminino oculto durante o estado novo”. Estas duas autoras nas suas obras recriaram a Lisboa do estado novo e a sua escrita segundo Maria Graciete Besse “está atenta ao quotidiano feito de pequenos nadas, para transmitir a experiência da solidão e do tempo estilhaçado numa sociedade asfixiante”. O filme de Marta situa-se em 1959 e retrata a vida da personagem Emília Monforte que luta aprisionada no tempo e aos costumes da época.
O que une a personagem Emília Monforte a Mariana Toledo, assim como ao percurso de vida real das autoras Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho foi que todas tiveram a experiência de uma orfandade precoce, que de certa forma fez com que tivessem um confronto com a solidão.
Talvez a pessoa fique verdadeiramente só quando já não tem neste mundo o seu pai e a sua mãe e surja um pânico repentino de um ser que nunca esteve só desde o período em que está na barriga da sua mãe e sente a sua companhia.
Talvez o segredo dos bons pais seja esse, garantir que o seu filho nunca se sinta só, mas que saiba que a solidão é um mau local para se viver mas é um bom local para se visitar.
É extremamente curioso ver hoje em dia a relação que as pessoas têm com o seu telemóvel e as suas aplicações, é como se fosse um vício anti-solidão.
O desenvolvimento da tecnologia foi de tal maneira que conseguiu criar a ilusão de que não estamos sós.
As sociedades foram-se modificando ao longo do tempo e as mudanças que se registaram durante o século vinte e vinte e um criaram alterações profundas na vida dos cidadãos.
Cada vez mais as pessoas têm instrumentos à sua disposição para “fintar” a solidão.
A ocupação das pessoas ao longo da história foi-se alterando à medida que a ciência e a sociedade foram-se desenvolvendo trazendo novas formas e costumes de vida.
A invenção das ferramentas, da roda, dos sistemas de saneamento, da bússola, da pólvora, do relógio, da bateria, da fotografia, da lâmpada, do telefone, da rádio, da televisão, dos satélites ou da internet produziram alterações profundas no funcionamento das sociedades.
Em tempos não muito remotos as pessoas deslocavam-se às casas vizinhas para ocupar as noites de inverno a jogar às cartas sob a luz de um velho candeeiro.
Na década de 30 do século passado a rádio através dos seus programas de informação, de música e de radionovelas era a companhia de excelência de muitas famílias.
O aparecimento da televisão, que em Portugal se deu em 1957, veio tirar o protagonismo à rádio. Nos primeiros tempos as pessoas deslocavam-se a locais públicos para assistir à “caixinha mágica”, pois poucas pessoas tinham televisão em casa.
Nas décadas seguintes a televisão passou a ser a companhia de eleição de muitas famílias portuguesas.
A televisão perdeu protagonismo com o aparecimento da internet no século vinte e um, que passou a ser a principal ocupação das pessoas e mudou o mundo de forma radical, alterando profundamente o estilo de vida das sociedades.
A quantidade de opções que um cidadão tem hoje em dia para ocupar o seu tempo é inacreditável relativamente às opções que as pessoas que viveram nos séculos passados tinham.
No final do século vinte uma pessoa podia seguir um acontecimento desportivo, ir ao cinema, ir ao teatro, ouvir rádio, ler um livro, ver televisão, ler jornais e revistas, ir a uma exposição e toda uma panóplia de atividades extremamente interessantes e entusiasmantes.
Hoje em dia para além de se poder fazer isso, pode-se através de um pequeno aparelho seguir as peripécias desportivas, ver filmes, ler jornais e revistas, ouvir música, ler um livro, ouvir rádio, ver televisão ou contactar com um amigo que esteja do outro lado do mundo, através de uma rede social, sem sair do seu próprio quarto.
Seria seguramente assustador para alguém que tenha vivido há alguns séculos atrás perceber o que um indivíduo da sociedade atual tem à sua disposição.
A pandemia provocada pelo vírus covid19, veio colocar em causa todas as coisas que tínhamos como garantidas até então.
Foi seguramente o acontecimento que mais afetou o mundo depois da pandemia de 1918 e das duas grandes guerras do século passado.
Como se tivéssemos andado para trás no tempo, retirou-nos todas as regalias conquistadas nas sociedades modernas, e como se vivêssemos sob a alçada de um grande ditador, retirou-nos a liberdade.
Na fase da emergência inicial foi verdadeiramente assustador ouvir de um altifalante de um carro que circulava nas ruas “Fique em casa”, como de um filme de terror se tratasse.
Esta pandemia fez com que a sociedade se tivesse alterado profundamente ao ponto de as pessoas darem mais valor ao simples ato de respirar.
Talvez nos tenha tornado mais humildes, mais próximos dos nossos ancestrais dos séculos passados.
Tal como disse a personagem Mariana Toledo do conto Tanta Gente Mariana “Há tantas coisas em que nunca pensámos por falta de tempo”, talvez esta pandemia tenha permitido que pensássemos e nos tenhamos confrontado connosco próprios e percebido o que realmente interessa e àquilo a que devemos verdadeiramente dar valor. Valter Hugo Mãe escreveu que “a solidão é um espelho. Levanta diante de nós aquilo que somos porque não nos podemos evitar”.
Talvez a história da evolução humana seja, ela própria, um ensaio sobre a solidão.
Saibamos então dar valor aos pequenos nadas como souberam Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho na sua escrita.
Saibamos então tal como na simbologia do filme “A donzela guerreira”, de Marta Pessoa, dar valor “à luta necessária pela conquista da liberdade onde se inscreva um futuro de maior dignidade para todos”, como referiu Graciete Besse.
Saibamos então dar valor a um sorriso diante de um espelho.