Juro que estou sóbrio, à hora em que escrevo estas notas, ainda não bebi nada. Mesmo quando o faço, não tenho mau vinho, nem bebo acima da conta, honrando aquela máxima da cultura simbólica portuguesa, de que “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”.
Vem o parêntesis de abertura, a propósito das notas seguintes sobre cultura política e eleições. Com calendarização definida, aproxima-se mais um período de chamamento ao voto num sugestivo conjunto de mentes esculpidas por grandíloquas ideias e convicções, oriundas de figuras de subscrição partidária.
Seria desejável que a democracia reconhecesse a urgência de se deitar no catártico divã de Freud
Como é do conhecimento do prezado leitor, nesse mundo comparecem vários subuniversos de filiação: de devotos partidários, a pseudoindependentes, a calculistas troca-tintas de partidos, que tumultuam os que já fizerem prova de devota dedicação às suas siglas, só instabilizados porque os dirigentes partidários recém-eleitos cismam com atribuladas renovações, favoráveis à reprodução do seu poder pessoal. Inclusões e exclusões entram na ordem do dia. Abre-se a polémica dos lugares e do esfriamento das relações entre a testosterona e o estrogénio dos que ficam por cima, por baixo e os que não ficam em parte alguma. Contrata-se quem fica e quem é despedido, sem grandes clamores nem ruidosas convulsões, nas alcovas dos órgãos partidários, parecendo não haver algo tão despótico como compor as famigeradas listas, em que são colocadas numa espécie de ordem arbitrária: autoestimas, aspirações e desejos dos candidatos. Afinal as listas parecem ser coisa nenhuma, conquanto não dizem quem são os indivíduos, qual o seu mérito, o que faziam ou porque nunca voltaram a ser nem a fazer o que eram e faziam antes de constarem nas ditas cujas.
Os deputados escolhidos, adubados e benzidos pelos líderes partidários nacionais, sentem que devem explicações aos que os selecionaram e não mais às pessoas que os elegeram. Uma prática que só pode constituir um forte estímulo dos deputados em seguir os gostos e predileções dos líderes partidários, durante o seu mandato, em vez de fazerem as escolhas que mais interessam ao seu eleitorado. O respeito quase cego pela disciplina de voto é uma consequência desse estímulo e um dos buracos negros da nossa democracia, colocando um pesado e inevitável ceticismo no livre exercício do seu mandato, face à útil vassalagem das lideranças, quando não a uma excelsa veneração.
Num clima aparentemente pacifico e explosivamente tenso, são poucos os que perdem a compostura na hora dos ajustes de contas internos. Não é conveniente expirar com força, inchando as bochechas, porque devem os seus lugares de deputados aos líderes que os colocaram nas listas e não diretamente aos eleitores. As chefias partidárias, que querem bué gente da sua confiança, são as que passam cartas de alforria àqueles que vão especializar-se na arte de bem sentar o seu singelo traseiro no parlamento, podendo ir na frente para ajustarem o arrendamento local da sua nova estada na capital.
Aos eleitores, por vezes alcunhados de cidadãos, cada vez mais entusiastas com momentos tão fascinantes e teatralmente encenados pelo marketing da política espetáculo, são dados a escolher os deputados que acompanham o carro-vassoura, essa figura móvel tão carismática da nossa prova ciclista nacional. Cultivam-se místicas salvações, embrulhadas em absurdas, exorbitantes e irresponsáveis promessas que tornam menos pesada a existência dos eleitores, quantas vezes com menosprezo pela sua inteligência, mas, que, à semelhança das protagonistas da série “Sexo e a Cidade”, ninguém “suspende os effeitos de humanidade”, cortando a pila a quem mentir. Talvez que daí decorrem irresistíveis tentações de uma pintura da realidade que, no desarrumo das ideias, denuncia que o que sobra em inteligência artificial, falta em inteligência social.
Depois, vem um estrumar e extremar de adversidades, nos temperamentais debates e nas picardias políticas com que ensaiam jogos de aproveitamento partidário e insanas guerras verbais. São mobilizadas, a gestão danosa a anatomia dos impostos, os aforros dos idosos, o desempenho das contas públicas, os rendimentos sociais de inserção, os redimensionamentos dos domínios público e privado na saúde, a insuportável carência de habitação e o recorrente imperativo dos equilíbrios curvilíneos entre oferta e procura, do velho Adam Smith. Sensibilizam-se, enfim, os gambozinos, acusando-se uns aos outros do uso indecoroso de vestuário sujo por nódoas provocadas pela indigência mental, de difícil remoção, mesmo com bendita benzina sugerida por Eça de Queiroz, no Conde d’Abranhos.
Poucos são os que se preocupam com a legitimidade e a representatividade do parlamento eleito, até porque são baixas as expetativas da opinião pública portuguesa relativamente ao Estado, bem como aos órgãos saídos das eleições. E as abstenções vão crescendo como mato grosso em jardins sujos e mal-amanhados, qual traçado de míseras paisagens, como metáforas de um cinzentismo que tolhe a vida das pessoas. E o mal-estar e a saúde da madura democracia vão-se acentuando, com os eleitores a desconhecerem os deputados que elegeram, acabando estes por não ser responsabilizados pelos concidadãos face às suas decisões.
Tivéssemos nós círculos uninominais e aumentaria a representatividade dos eleitos, ficando mais garantida a proporcionalidade da escolha dos eleitores. O aumento do interesse do eleitorado seria uma evidência, responsabilizaria os eleitos pela sua prática política e o caso mudaria de figura.
É que, com a nostalgia sobrevinda a muito boa gente, não faltam vincadas saudades das peripécias que, na extravagante democracia do vetusto Estado Novo, marcavam a vida dos defuntos que ousavam matar a morte. Aí, todos, todos, todos se manifestavam nos fóruns eleitorais, com igual valor: vivos ou mortos. Chegava a ser milagroso como no lusitano reino de “Deus, Pátria e Família”, mortos tão vintage, sempre bem conservados, desempenhavam um papel tão notável nas eleições, conciliando o celestial descanso da vida eterna com uma política ativa tão frenética. Talvez, por isso, o exótico regime ainda hoje mantenha um extenso e profundo rasto de amores e ódios.
Com efeito, nos últimos anos, o nível de abstenção tem vindo permanentemente a aumentar, dando sinais preocupantes de que podemos estar a perder o interesse pela democracia. Presente-se no ar uma oxidante deterioração, uma displicência que não dá conta de que o regime pode estar mais animado de passado que de futuro, que começa a ver estremecida a sua festa, feita do impulso obstinado de uma liberdade imaginada por idealistas e sonhadores, porventura engajada em sentimentos tão generosos que se tornaram pouco coadunáveis com uma conceção darwinista da economia.
Queixosa e poética como é a nossa cultura, marcada na carne e na vida por umas lamentações aqui e ali, é nela que se vão soltando notas de desalento e desespero nas alas abertas pela pobreza, nas frouxas queixas de falta de proximidade da democracia, no afastamento dos políticos, na reduzida transparência do processo democrático e na decrescente legitimidade pelo crescente e permanente avolumar dos sinais abstencionistas. De tal forma, que o sistema parece mais arquitetado para enxotar que para congregar, parecendo não conseguir ver o que uma criança enxerga no conto de Hans Christian Andersen, de que o rei vai nu.
Seria desejável que a democracia reconhecesse a urgência de se deitar no catártico divã de Freud. Seria útil que fizesse a sua inevitável e urgente introspeção e inovasse na útil utilização da liberdade face à incerteza do futuro, não vá a sua cristalização despenhar-se no horror, na amargura, nas atrocidades e na bestialidade de uma amarga ditadura.
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