É como se o mar fosse o seu deserto! E sobre aquela rocha, respirando o imenso azul à sua frente, edificou ele o seu Ribat.
Chega-se lá pela estrada que bordeja toda a costa vicentina. Cheia de tojos, urzes, malvas e ervas rasteiras.
A espuma do mar e a névoa molhada isolam a Ponta da Atalaia ainda mais do mundo, “conferindo-lhe o misticismo próprio dos lugares sagrados” – escreveu Mário Varela Gomes.
Foi lá, na “finis terrae de Arrifana” que cansado das guerras e dos homens, Ibn Qasi, o monge soldado, decidiu construir o seu retiro.
Dali, à distância de um olhar, adivinha-se o castelo onde, um século depois, uma moirinha perdida de amores por um guerreiro cristão abriu as portas aos cavaleiros de Santiago para a conquista de Aljezur. Entre um e o outro, fica a lenda e a história. Falada em árabe.
Ela chamava-se Maria Aires, que a memória do povo guardou como Mareares. Linda e plebeia. Ele, rei do Garb, nobre e poeta, monge e guerreiro.
Num tempo em que os cristãos corriam para sul procurando desalojar os Almôadas do Algarve, conta-se que a bela e morena plebeia moirinha, num assomo de maior arrebatamento por um cavaleiro cristão, não resistiu a segredar-lhe confidências. Que – informou ela – deveriam escolher a madrugada de 24 de junho, para tomarem de assalto a praça forte. Porque seria por essa hora, antes de a noite se fazer dia, que os habitantes tinham por costume irem banhar-se nas águas frescas da praia lá mais ao fundo.
E assim, na posse desse segredo, os homens de D. Paio Peres Correia, camuflados por moitas de vegetação e a coberto da escuridão da manhã que ainda tardava, encetaram a aproximação e o assalto final ao castelo desguarnecido.
Nunca haviam imaginado tão fácil conquista!
Afirma-se que, sensibilizado pelo gesto e encantos de Maria Aires, D. Paio poupou-lhe a vida e a honra, fazendo-lhe erguer uma casa em local próximo da povoação que ainda hoje, em sua memória, se chama Mareares.
O castelo, e em torno dele a vila, edificado sobre ruínas de um castro lusitano do período romano, ergue-se no cimo de uma colina de quase cem metros de altura, dominando o vale e a ribeira.
Ribeira essa que chegou a ser um porto fluvial do antigo império almorávida. E o seu assoreamento posterior retirou a importância estratégica à povoação de Aljezur que foi decaindo pelos séculos adiante. Da herança mourisca ficaram o castelo, a sua cisterna e as casas caiadas de branco nas ruas estreitas pelo monte acima.
E no espigão rochoso, junto ao mar, abraçando o infinito, haviam sobrado também, muitos anos antes, as ruínas do ribāt al-Rihāna, daquilo que outrora fora um retiro de monges guerreiros cansados da guerra.
Foi ali que eles encontraram o recolhimento que buscavam, entregando-se à meditação e à exaltação mística. À imagem do seu mestre, abraçaram o legado filosófico por ele deixado e o espírito de despojamento e renúncia de bens materiais.
O ribatda Arrifana, fundado em 1130, sendo um retiro para estudo e reflexão religiosa, não perdera, no entanto, o espírito guerreiro dos seus fundadores. Seguindo os grandes princípios doutrinais de Ibn Qasi, os monges eram preparados para a guerra contra os inimigos do islão. Fossem muçulmanos hereges ou gentes de outra fé. A jiadera legitimada como guerra santa de preservação e difusão do islão. Todavia, com cambiantes que gradualmente lhe foram emprestando uma autonomia crescente, afastando-o e aos seus seguidores, da corrente religiosa islâmica mais radical.
O sufismo que encerra a mensagem espiritual de Ibn Qasi defende a unicidade divina e o amor universal, contra a prepotência e a tirania. A sua formação e origem social – pois era natural de Silves e descendente de uma antiga família cristã – “constituem uma herança cultural de um mundo que não deixou de o influenciar”. Não admira, por isso, que passasse a receber a hostilidade e fosse tomado como inimigo a abater, da parte do poder islâmico dominante.
Mas foram tantos os seus seguidores que “a palavra do mestre depressa se transformou em corrente religiosa e política, tendo alastrado a todo o sudoeste peninsular”.
Em 1144, um grupo dos seus discípulos conquista o castelo de Monte Agudo, aos almorávidas, situado nas imediações de Mértola.
“Estava dado o sinal de um tempo novo”. Era a ofensiva dos Almôadas, e o seu aliado Ibn Qasī fez a sua entrada triunfante naquela povoacão, “sendo aclamado mahadī, ou enviado
de Deus”. De seguida, cai Marraquexe a mais importante praça do Magrebe e, finalmente, conquistam Sevilha. Uma vitória que se revelou decisiva para o reconhecimeto do domínio almôada no Garb al Andaluz.
Ibn Qasi era então um líder religiosos e político incontestavelmente respeitado. E foi constituído representante do rei al-Mumin, no al Andaluz.
Porém, esta convivência pacífica foi sol de pouca dura para este guerreiro que se tinha recolhido no seu refúgio da Arrifana.
Afinal – percebeu ele depressa – nada de substancial mudara na natureza do novo poder. A mesma intolerância, sobranceria e prepotência prosseguida agora pelos almôadas, empurraram-no para os braços do rei cristão que abria caminho em direção ao sul. Afonso Henriques recebe-o como seu par “oferecendo-lhe um cavalo, um escudo e uma lança, prendas próprias de soberano”.
Porém, naquele mesmo ano de 1151, Ibn Qasi, acusado de trair o islão, foi assassinado em Silves. Morreu às mãos de um dos seus seguidores.
O castelo da Arrifana, como o povo lhe chama, foi então abandonado e as suas ruínas identificadas apenas em 2001. A aguardar que um novo príncipe muçulmano – provavelmente Agha-Khan, líder espiritual dos xiitas ismailis – o possa fazer despertar do sono longo e profundo em que esteve soterrado.
Juntado-se à lenda que permanece vagamente na memória do povo, para afirmar que a povoação de Aljezur foi fundada por um príncipe-poeta da Arrifana.
Fontes: “Ibn Qasī – Memórias, do pensamento e acção do mestre sufi da Arrifana, Al-Rihana, Aljezur, n.º 2” e “National Geografic, – As ruínas arqueológicas da Arrifana”, Rosa e Mário Varela Gomes; “ As Sandálias do Mestre”, Adalberto Alves; Fotos National Geografic Portugal; outras