Em meados da década de 1950 Gabriel García Marquéz, um já conceituado jornalista colombiano, a pretexto de um festival que decorreu em Moscovo (VI Congresso da Juventude), fez uma digressão por vários países socialistas. O resultado é uma obra-prima da literatura de reportagem, num mundo obcecado pelas notícias curtas, incisivas e cortantes, em que se pretende sufocar o olhar do repórter, este livro é uma bênção para leitores de todos os estilos, poder ler uma escrita luminosa, deslumbrante, sem presas ideológicas. É uma viagem por um mundo que já não existe. Mais uma razão importante para ler “Em viagem pela Europa de Leste” por Gabriel García Márquez, Publicações Dom Quixote, 2017.
O repórter viaja com Jacqueline, francesa de origem indochinesa, paginadora de uma revista de Paris, e com Franco, um italiano errante, correspondente ocasional de revistas milanesas, domiciliado onde a noite o surpreenda. Partem da República Federal da Alemanha para a Alemanha Oriental, vão de automóvel, viajam por uma das auto-estradas que Hitler mandou construir para fazer circular rapidamente a sua potente máquina de guerra. As peripécias amontoam-se, com esperas, interrogatórios, exames dos passaportes, troca de dinheiro: “Após meia hora de gestos extravagantes, de gritos e maldições em cinco idiomas, apercebemo-nos de que estávamos enredados num sofisma económico. Os direitos do automóvel custavam 20 marcos orientais. Os bancos da Alemanha Ocidental dão 4 marcos ocidentais por 1 dólar. Os bancos da Alemanha Oriental, também por 1 dólar, dão apenas 2 marcos orientais. Contudo, o marco ocidental e o marco oriental têm paridade. O problema consistia em que, se pagássemos em dólares, os direitos do automóvel custavam 10 dólares, mas se pagássemos em marcos ocidentais só custavam 20 marcos ocidentais, quer dizer, apenas 5 dólares”. Prossegue a viagem, noite fora, ao amanhecer entraram num restaurante do Estado: “Eu nunca tinha visto tanto patetismo concentrado no ato mais simples da vida quotidiana, o pequeno-almoço. Uma centena de homens e mulheres de rostos atormentados, maltrapilhos, a comer em abundância batatas e carne e ovos estrelados no meio de um surdo rumor humano e num salão cheio de fumo”.
Já estamos em Berlim, nada escapa ao olhar penetrante deste génio da literatura: “A réplica socialista ao ímpeto de Berlim Ocidental é o colossal mamarracho da avenida Estaline. É esmagador, tanto pelas dimensões como pelo mau-gosto. Uma indigestão de todos os estilos que corresponde ao critério arquitectónico de Moscovo. A avenida Estaline é uma imensa perspectiva com residências parecidas com as dos pobres ricos de província, mas amontoadas umas em cima das outras, com incalculáveis toneladas de mármore, de capitéis com flor, animais e máscaras de pedra e esgotantes portais com estátuas gregas falsificadas de cimento armado. Recorde-se que esta reportagem é escrita antes da edificação do muro de Berlim, que ocorreu anos mais tarde. Os viajantes seguem para Leipzig. Aqui lhe ocorre uma reflexão fulgurante: “Os operários estão bem, mas não têm consciência política. Fazem considerações absolutas e não percebem por que razão o governo lhes diz que o proletariado está no poder e têm que trabalhar como burros para comprar uma indumentária que lhes custa o ordenado de um mês. Em contrapartida, os operários da Alemanha Ocidental, que são explorados, têm mais conforto, melhor roupa e direito à greve. Ninguém trabalha com entusiasmo: a indústria de confecções, sem o estímulo da competição, fabrica horríveis roupas de espantalho. Como não há patrões, como ninguém os despede, como não percebem o que significa o socialismo sem sapatos, os encarregados do serviço cruzam os braços enquanto os clientes esperam e não lhe importa que façam fila toda uma tarde do domingo para beber uma limonada. Dos ministérios às cozinhas, há uma complexa teia burocrática que só um regime popular podia desenredar (…) O povo não vê o desenvolvimento da indústria pesada, não quer saber para nada dos ovos estrelados ao pequeno-almoço, e a única coisa de novo que vê é que a Alemanha está partida em duas e há soldados russos com metralhadoras. Os habitantes da Alemanha Ocidental vêem exactamente o mesmo: o país dividido e soldados americanos em automóveis do último modelo. Nenhum dos dois protesta porque sabem que perderam a guerra. Mas em segredo todos sabem o que querem, antes de falar de socialismo ou de capitalismo: a unificação da Alemanha e a evacuação das tropas estrangeiras”.
Tenho lido, por privilégio, crónicas modelares, diamantes literários. Mas ficará para todo o sempre esta leitura de uma viagem pela Alemanha Oriental, Checoslováquia, Polónia, Hungria, União Soviética. E não é só a mestria literária, o prazer da escrita, a acuidade do olhar. É seguir atrás do repórter e perceber o que há de rutilante nas suas previsões: Praga nunca deixou de ser uma cidade da Europa Ocidental, sempre se impôs pela sua indústria pesada e pela sua distinção cultural; os polacos foram sempre reticentes com o comunismo, resignaram-se com a ditadura, desforraram-se com as suas livrarias, a vida religiosa a reconstrução das suas cidades magníficas, a juventude participava activamente na política, mantiveram-se insubmissos. E é magistral o que ele escreve sobre Moscovo, como não deixa de ser tocante o que ele viu em Budapeste, pouco antes houvera o levantamento popular sufocado pelo exército soviético e pelo regime de Kadar. Nas casas de banho encontrou os testemunhos sobre a situação húngara, as inscrições não mentiam: “Kadar, cão de fila dos russos”.
Sim, Gabriel García Márquez é muito mais do que aquele escritor que deixou para a posteridade obras geniais como Cem Anos de Solidão, O Amor nos Tempos de Cólera ou O General no seu Labirinto. Esta reportagem é um documento sublime.