As previsões e a futurologia são armas de dois gumes. O estudioso (sozinho ou acompanhado) abalança-se a traçar um cenário em função de elementos que são dados como comprovados e credores de uma linha de desenvolvimento. Casos há em que se confirma o prognosticado, lembro-me das teses de Daniel Bell sobre o advento da sociedade pós-industrial, que tanta celeuma deram na época, o sociólogo norte-americano anunciava a perda de importância da industrialização, a indiscutível ascensão do terciário com um conjunto de alterações de grande impacto no campo sindical e as consequências no investimento para o universo dos serviços.
Um reputado futurólogo, Hermann Kahn, previa, nos inícios da década de 70, um crescimento assombroso graças ao petróleo barato, bem se enganou com tudo quanto aconteceu a partir do primeiro choque petrolífero, em 1973.
Como Será o Futuro e Porque Depende de Nós, por Tim O’Reilly, Publicações Dom Quixote, 2019, é uma obra em que se procura vaticinar o funcionamento do mercado a partir das plataformas digitais, onde dominam o acesso e a velocidade da comunicação, tudo num sistema em que a economia e o mercado financeiros são geridos por algoritmos, e que estamos a caminhar desordenadamente entre a desigualdade de rendimentos, o declínio da mobilidade ascendente e a perda de postos de trabalho. Como é evidente, as previsões de Tim O’Reilly nem de perto nem de longe previam o tufão que a pandemia veio instalar em todas as sociedades desde o início de 2020.
O acesso que parecia ser uma linha do futuro, pense-se no Airbnb, na Uber, na Amazon, negócios em que o investidor detém tecnologia mas não possui propriedade. As novas tecnologias permitem fazer o que anteriormente parecia impossível mas há que questionar se poderão ajudar a construir um tipo de sociedade assente na sustentabilidade e no desenvolvimento justo. “A inteligência artificial e a robótica, em especial, estão no cerne de um conjunto de problemas complexos que estão a alarmar os líderes sindicais, os decisores políticos e os académicos.
O que acontecerá a todas as pessoas que ganham a vida ao volante quando os carros começarem a conduzir-se a si próprios. As inteligências artificiais estão a pilotar aviões, a aconselhar médicos sobre os melhores tratamentos, a escrever notícias desportivas e financeiras e a dizer-nos a todos, em tempo real, a forma mais rápida de chegar ao trabalho. Estão também a dizer a trabalhadores humanos quando devem comparecer ao trabalho e quando devem ir para casa, baseando-se me avaliações em tempo real da procura; cada vez mais são os seres humanos que trabalham para os computadores. Os algoritmos são os novos chefes de turno”. Levanta-se assim o véu sobre o futuro da economia e da organização social.
O autor dirige o seu estudo para quatro vetores: a previsão de ciclos de inovação como a comercialização da Internet, o aumento de programas informáticos de código aberto; elaborou um quadro de reflexão com umas tecnologias como os serviços a pedido, as redes e plataformas e a inteligência artificial estão a mudar a natureza das empresas, dos mercados financeiros e da economia no seu todo, e não esquece o Google, o Facebook e a Apple; e por fim tece um conjunto de considerações sobre as escolhas que temos de fazer enquanto sociedade. Naturalmente que o leitor irá verificar como uma parte substancial deste trabalho está focado num olhar marcadamente norte-americano.
Elabora a evolução dos programas informáticos, como tudo leva a crer que estamos a caminho de um cérebro global e que talvez a inteligência coletiva não seja uma quimera. Toda a comunicação se alterou e o decisor político estabeleceu nova relação com as assembleias em rede que o seguem através do Twitter ou do Instagram. Os modelos de negócio assentes na economia de pedido e que dependem do uso das plataformas digitais florescem e causam impacto brutal no sistema tradicional de livraria, de acolhimento turístico, de viagens em táxi, de arquivos fotográficos, dos negócios online em geral.
O autor e os seus colaboradores dissertam naturalmente sobre a implementação das novas tecnologias, a intervenção do Estado, e daí viajamos por um mundo governado por algoritmos em que somos obrigados a repensar tudo. Logo a regulamentação: “A eletrónica dos nossos automóveis regula a mistura de combustível e de ar no motor para produzir o equilíbrio ideal de eficiência de combustível. Um piloto automático de avião regula os inúmeros fatores necessários para manter o avião no ar e na direção certa. As empresas de cartões de crédito monitorizam e regulam as cobranças para detetar fraudes. Os médicos regulam a dosagem dos medicamentos, por vezes com cuidado extremo, tal como no caso da quimioterapia”. Ora todas estas formas de regulação têm em comum: uma compreensão clara do resultado desejado; medição em tempo real para determinar se esse resultado está a ser alcançado; um conjunto de regras que fazem ajustes contínuos para alcançar o resultado; análise periódica e aprofundada para avaliar se os algoritmos estão corretos.
Os sensores mudaram a nossa existência: podemos ser multados por excesso de velocidade devido à fiscalização das câmaras de vídeo; com a generalização dos GPS, estamos a encaminhar-nos para um futuro em que os condutores em excesso de velocidade vão deixar de ser parados pelos polícias passando a ser multados sempre que excedam o limite de velocidade. “Podemos também imaginar um futuro em que o limite de velocidade seja estabelecido automaticamente com base na intensidade do trânsito, condições meteorológicas e outras variáveis que ajustem a velocidade de uma forma mais adequada que a do limite estático atual”. Sem margem para dúvidas cresce o sentimento que vivemos numa sociedade de vigilância, que o mundo do emprego se torna cada vez mais proteiforme, com uma gama de adaptações que introduzem desordenamentos na vida familiar, de muita gravidade, para já não falar em empregos de qualificação hiper em pequena escala e uma multiplicidade de empregos com remunerações que agravam as desigualdades. E temos o mundo das mentiras, da não-verdade, da difusão de falsidades para estabelecer a confusão nos eleitorados, o autor dá-nos um quadro altamente preocupante sobre o funcionamento atual dos media, dizendo mesmo: “A necessidade de atrair a atenção dos motores de busca e das redes sociais é um fator importante para a estupidificação dos meios de comunicação e para um estilo de jornalismo que empurra até mesmo as publicações de referência para uma cultura de exageros, falsas controvérsias e outras técnicas para aumentar o tráfego”.
No final, deixa-nos previsões fluidas, de pouco compromisso, diz que temos que reescrever as regras, pôr ordem na “mão invisível” dos mercados financeiros, vamos viver mais e obrigatoriamente em aprendizagem permanente, são dados bem conhecidos. Interroga se o trabalho cognitivo poderá alguma vez substituir o emprego em massa das fábricas do século XX e despede-se com recomendações muito vagas e genéricas do tipo “trabalhem em algo que considerem mais importante do que o dinheiro” e “criem mais valor do que aquele de que se apropriam” ou então “pensem a longo prazo”. Enfim, uma boa análise sobre as tecnologias emergentes e um quadro de conclusões sem nada de novo.