Filosofia dia-a-dia
A compaixão é natural
Quanto mais cuidamos da felicidade dos outros, maior é a nossa sensação de bem-estar.
(Dalai Lama)
O impulso para ajudar surge espontaneamente, é quase um acto reflexo: alguém escorrega, os braços estendem-se para amparar; um carro empanado, juntamo-nos para empurrar; alguém se sente triste, tentamos consolar.
O treino da entreajuda começa cedo, no seio familiar, com a distribuição das tarefas domésticas que visam o bem comum, ou em actividades tais como os desportos em equipa ou o voluntariado.
Quando um grupo de pessoas se junta com este espírito de entreajuda, as coisas acontecem quase sem esforço e todos se sentem melhor, mais alegres, de alma nutrida. A oportunidade de expressar a nossa generosidade inata proporciona um prazer profundo, sentimo-nos parte de um todo, temos um vislumbre da unidade primordial.
Quando a ajuda corre mal
Muito ajuda quem não atrapalha.
(Provérbio Popular)
Embora o impulso para ajudar seja inato, será que isso basta? Vejamos alguns exemplos reais:
Numa aldeia remota os habitantes, sobretudo mulheres e crianças, caminhavam quilómetros para trazer água potável para as suas casas. Uma ONG conseguiu fundos para instalar água canalizada. Foi um processo moroso e um investimento considerável. Pouco tempo depois da obra concluída a canalização foi vandalizada. Um estudo antropológico revelou que era durante a caminhada para ir buscar água que as mulheres falavam umas com as outras livremente, sem a presença e a censura dos homens. Era o seu momento de intimidade feminina, partilhavam confidências, saberes, conselhos. Riam juntas. Os “benfeitores” chocados com a dureza do seu dia a dia, projectaram o seu próprio desconforto na condição destas mulheres, desconforto esse que elas próprias não sentiam. Tentaram resolver um problema para elas inexistente e, pelo contrário, criaram um outro problema, esse sim tão doloroso —a supressão do seu único espaço de liberdade— que as levou a um acto de vandalismo.
No Natal, uma organização de caridade angariou fundos e ofereceu bengalas articuladas a uma comunidade de cegos. Para grande surpresa, a maioria destas novas e sofisticadas bengalas apareceu pouco tempo depois à venda em mercados de rua. Por que é que isto aconteceu? Em primeiro lugar todos estes cegos já tinham a sua bengala. O presente era, portanto, supérfluo. Em segundo lugar, cada bengala tinha a sua história: uma tinha sido a oferta de um filho emigrado, outra ganha num concurso de xadrez para invisuais, um dos presenteados não se adaptou de todo a uma bengala articulada, e assim por diante. Em vez de gerar felicidade e gratidão, a iniciativa foi recebida como descabida, intrusiva até.
O que é que estas duas histórias têm em comum? Em ambos os casos os supostos benfeitores actuaram unilateralmente. Decidiram tudo sem perguntar aos directamente interessados de que é que eles precisavam, que tipo de ajuda gostariam de receber. Que pretensão de ajudar é esta que ignora totalmente o outro? Como posso pretender saber o que é que o outro deve fazer, ou o que é que lhe convém sem sequer lhe perguntar? Mas que grande dose de arrogância!
A Prisão do Benfeitor
Algemados de pernas e pescoços, só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente.
(Alegoria da Caverna, Platão)
Somos encorajados a ajudar e essa ajuda é frequentemente recompensada. No entanto, a partir do momento em que o sentido da recompensa prevalece, a expressão da compaixão natural foi tergiversada. Infelizmente, estes subterfúgios começam cedo: se for pôr o lixo na rua talvez o meu pai me empreste o carro; ajudo nas compras e consigo que a mãe me faça o meu bolo favorito; etc. Já adultos, esta tendência mantém-se: oferecemo-nos como voluntários em busca de reconhecimento. Ocupamo-nos com os problemas dos outros para fugir de enfrentar os nossos próprios problemas. Ao julgarmo-nos capazes de ajudar sentimo-nos poderosos e respeitáveis.
É muito difícil encontrar uma disposição para ajudar que não esteja toldada por necessidades pessoais. Basta olharmos para dentro com atenção. Qual é realmente a minha motivação? Existe um grande potencial no reconhecimento das nossas intenções, que na maioria dos casos se revelam muito menos nobres do que aparentavam. O simples facto de estarmos alerta para as armadilhas da nossa mente pode constituir o principio da libertação. É o virar do pescoço do prisioneiro no fundo da caverna platónica. Tudo começa pela mudança do ponto de vista.
A Verdadeira Ajuda
Com o rio aprendeu como ouvir com um coração sossegado e uma mente aberta, sem paixões, nem desejos, julgamentos ou opiniões.
(Siddhartha, Hermann Hesse)
A nossa capacidade para ajudar não depende tanto dos nossos recursos financeiros, dos nossos conhecimentos, das nossas capacidades, do nosso treino ou até do nosso tempo. De que depende, então? Depende, sobretudo, do nosso estado mental. Uma mente dispersa, confusa, deprimida ou agitada dificilmente propicia ajuda adequada.
Não é somente o que fazemos, mas a forma como o fazemos. A motivação de que estão imbuídos os nossos actos.
Embora raras, existem pessoas que com a sua mera presença já estão a beneficiar os outros. Alguns de nós já terão tido esta experiência: estar na presença de alguém que tem uma mente aberta, sossegada, alegre, receptiva e reflexiva constitui, por si só, uma enorme ajuda!
A maioria de nós, enquanto ajuda, tem a mente ocupada com outras coisas: está a planear, a calcular, a avaliar, a julgar, a tomar as coisas pessoalmente e a sentir-se ofendido, ou está aborrecido, zangado, maldisposto… A lista de distracções da mente é interminável! Quer dizer, estamos primeiramente com os nossos pensamentos, e não com o outro! Não só a nossa capacidade de escuta diminui, mas a rede conceptual que a nossa mente vai tecendo constrói um filtro que selecciona a informação. Já não ouvimos de forma isenta. Com tanta actividade e reactividade mental, o espaço de encontro com o outro é diminuto. A motivação fraca não consegue eliminar as distracções da mente. A verdadeira ajuda presta-se apenas quando estamos totalmente concentrados nas necessidades do outro e esquecidos de nós. Cessa a diferença de papéis entre “aquele que presta ajuda” e “aquele que é ajudado”. Quando as personagens que desempenhamos caem por terra, o que existe é apenas um espaço comum. Livres da ilusão de uma existência separada, estamos agora unidos nessa compaixão primordial intrínseca a todos nós.
Busco um exemplo a seguir e lembro-me das árvores. As árvores sem falar ou saírem do seu lugar, dão-nos sombra, alimentos e oxigénio. Sendo essenciais para a vida não esperam gratidão.
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