No último número procurámos identificar o enquadramento para as obras de arte produzidas por artistas que não têm formação académica em artes visuais, sendo feita uma retrospetiva de vários conceitos que foram surgindo na literatura, desde finais do século XIX, para enquadrar estas produções artísticas, nomeadamente o conceito mais abrangente de arte naïf.
No entanto, de entre a expressão artística daqueles que não têm formação académica neste domínio, há o caso particular das pessoas com experiência de doença mental.
De entre as várias designações propostas ao longo do século XX, como arte bruta, arte degenerativa, arte pura, arte visionária ou arte marginal, a designação de arte espontânea parece ser a mais abrangente e consensual para descrever a expressão artística de pessoas diagnosticadas com doença mental, tendo em conta que a espontaneidade é comum aos processos envolvidos na produção artística em qualquer das designações propostas.
Assim, o conceito de arte espontânea designa as obras que apresentam qualidades de expressão estética, na forma de desenho, pintura ou escultura, realizadas por pessoas diagnosticadas como sendo portadoras de doença mental.
E a arte espontânea pode ter um papel muito importante para a estabilização e recuperação no âmbito da saúde mental, como aliás a arte terapia tem vindo a revelar.
Foram vários os contributos realizados ao longo do século XX procurando destacar a importância da expressão artística de pessoas diagnosticadas com doença mental.
Destes destacamos o trabalhos de Prinzhorn, que estudou as características de estruturação de obras produzidas por doentes mentais, tendo em 1922 publicado o livro “Obras artísticas de doentes mentais”. Em homenagem a Prinzhorn, em 2001 foi criado o “Sammlung Prinzhorn Museum”, alojado no Hospital Universitário Heidelberg, na Alemanha, onde pode ser admirada a coleção de obras de arte realizadas por pessoas com doença mental.
Por seu turno, no Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira criou uma oficina de artes plásticas para doentes mentais, os quais podiam produzir de forma completamente livre e espontânea as suas obras. Em 1954, Nise fundou o “Museu de Imagens do Inconsciente” com as obras produzidas pelos “doentes-artistas”.
Em Portugal têm sido várias as associações e instituições que têm desenvolvido um trabalho no âmbito da estabilização e recuperação de pessoas portadoras de doença mental através da expressão ao nível das artes visuais.
Destacamos o trabalho recente realizado pela ReCriar Caminhos, uma Associação de Apoio ao Desenvolvimento Vocacional, Formação e Inclusão de Pessoas com doenças mentais, criada em 2008 e tendo obtido o estatuto de IPSS em 2010. Esta Associação promove atividades de reabilitação psicossocial procurando “recuperar e desenvolver talentos”.
Recentemente, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, foi realizada em Coimbra a “II Exposição Nacional de Arte Espontânea”, organizada pela ReCriar Caminhos. Nesta exposição encontravam-se reunidos trabalhos provenientes de seis instituições portuguesas que possuem Centros de Atividades Ocupacionais destinados à estabilização e reabilitação de pessoas com doenças mentais, de entre elas a Associação de Saúde Mental do Algarve (ASMAL).
No Prefácio do Catálogo desta exposição, Manuel Viegas Abreu destaca que as obras produzidas por pessoas diagnosticadas com doença mental nascem sobretudo devido à necessidade de comunicar e podem ser interpretadas como mensagens, apelos ou pedidos de ajuda.
E é fundamental ser tida em conta esta forma de expressão por estas pessoas, não apenas em termos de diagnostico, mas também pela realização que esta expressividade lhes pode proporcionar.
Num artigo anterior, intitulado “Qual a importância do reconhecimento da criatividade dosartistas?, tínhamos destacado que o reconhecimento ou não do trabalho criativo dos artistas pode ser um aspeto muito importante para compreender o desenvolvimento ou não de problemas de saúde mental. Talvez se Van Gogh tivesse sido reconhecido em vida, em vez de ter desenvolvido psicopatologia, teria sentido estímulo para a concretização da sua criatividade e de todo o seu potencial artístico, não se tendo suicidado.
Várias investigações têm verificado a importância da realização do sujeito e do reconhecimento pelos outros como uma dimensão protetora para prevenir a depressão das pessoas em geral. Este reconhecimento é tanto mais importante em relação a pessoas que são mais vulneráveis do ponto de vista psicológico, pelo que é essencial o trabalho desenvolvido pela ReCriar Caminhos e pelas outras instituições e associações que procuram promover a expressão artística e o reconhecimento das obras produzidas por pessoas diagnosticadas com doença mental.