Integrado na Festa dos Anos de Álvaro de Campos, que se continuará a celebrar até dia 30 de Novembro, o Café Filosófico de Outubro foi o primeiro presencial desde o início da pandemia. Um Café Filosófico não é uma palestra, é um encontro de saberes e reflexões, vive sobretudo das intervenções de quem nele participa. Tendo sido este um encontro tão rico, venho hoje aqui dar conta do que nele se conversou.
Foram lidos alguns excertos da obra de Pessoa onde claramente aparecem posicionamentos racistas, e lançada a dúvida de saber se esses textos seriam ou não atribuíveis ao poeta, ele próprio, ou ao quase heterónimo António Mora. Alguns especialistas afirmam que assim é e consideram-no uma antítese de Pessoa num exacerbado exercício de retórica. Encurtando razões, deixámos esse deslinde para os investigadores de pleno direito e passámos a ocupar-nos do problema em si mesmo: tentar perceber como é que pensamentos ou ideias de cariz racista podem surgir na nossa mente.
“Raça é um nãoconceito!”, exclamou um dos participantes. De facto, trata-se de um construto social. A humanidade é uma apenas… Lançou-se então o repto de tentarmos perceber se e como é que a ideia de racismo poderia estar na base do sentimento de nação. Apontou-se para o universalismo da humanidade que se opõe aos particularismos da nossa condição e nos tornam sexistas, nacionalistas, etc… “Nós para sermos Portugueses temos de não ser tudo o resto!” Ficou claro para todos que só tomando a nossa portugalidade como o topo daquilo a que se pode aspirar na condição humana, podemos considerar que temos não apenas o direito mas até o dever de nos expandirmos, de “civilizar” outros povos e de os “aportuguesar”. Em catadupa foram surgindo da boca dos vários participantes exemplos de movimentos expansionistas deste género: a reconquista cristã; o nazismo alemão; todos os colonialismos; a revolução francesa… a lista não parava de aumentar! Um dos participantes de nacionalidade francesa, questionou-se sobre como foi possível que o seu povo, em prol dos ideais tão nobres como a liberdade, a igualdade e a fraternidade andasse a decapitar cabeças e a invadir outros povos!
De onde surgiria este pensamento “civilizacional-expansionista” tão amplamente arreigado no nosso mundo ocidental? Sugeri que olhássemos para a obra de Aristóteles ― filósofo grego do sec. IV a.C., que foi aluno de Platão e preceptor de Carlos Magno. De facto, falar do pensamento do estagirita é, em grande medida, falar do nosso próprio pensamento. A linguagem científica actual e muitas das expressões da linguagem comum são, sem que nos apercebamos disso, decalcadas dos esquemas conceptuais elaborados por Aristóteles para dar forma às suas ideias. Mergulhámos então no Livro I da Políticaonde o filósofo claramente defende a escravatura. Começa por estabelecer que dos instrumentos que temos disponíveis uns são inanimados e outros animados. Por exemplo, para um comandante de navio o leme é inanimado e o vigia é um instrumento animado. Daqui para a afirmação de que “o escravo é uma posse animada” foi apenas um pequeno passo. Aristóteles define-o como aquele que sendo homem “não se pertence por natureza a si mesmo, senão a outro (…), sendo homem é posse de outrem”. O filósofo vai ainda mais longe afirmando que a escravatura é um direito natural pois, “por natureza, alguns estão destinados a obedecer e outros a mandar. De acordo como seu raciocínio, uns nascem livres e outros não e, para estes últimos, “ser escravo é conveniente e justo”. A questão racial acaba por ser também aflorada ao afirmar que “a natureza quer inclusivamente fazer diferentes os corpos dos livres e dos escravos: uns fortes para os trabalhos necessários; outros, erguidos e inúteis para tais necessidades, mas úteis para a vida política”. Contudo, o próprio filósofo reconhece que, muitas vezes, sucede o contrario: “há escravos que têm corpos de homens livres, e outros, almas”. Por último, Aristóteles defende que a arte da guerra “deve utilizar-se contra os animais selvagens e contra aqueles homens que, havendo nascido para obedecer, se negam a isso”. Sendo que este tipo de guerra se considera “justa por natureza”.
Uma das participantes recordou-nos então a Controvérsia de Valladolid (1550-51) na qual se pretendeu apurar se os índios americanos tinham alma ou se eram selvagens susceptíveis de serem domesticados. Na esteira aristotélica, Guinés de Sepúlveda foi partidário da “guerra justa” contra os indígenas, devido à sua inferioridade, defendendo a sua subjugação. Bartolomé de las Casas foi o grande defensor deste povo procurando demonstrar a sua racionalidade. Um dos participantes sugeriu que os ameríndios também eram aristotélicos sem o saber! Pois pegavam nos espanhóis e metiam-nos debaixo de água. Se eles morressem não eram veneráveis…
Chegámos à conclusão de que as sociedades humanas parecem estruturar-se com base nessa ideia de supremacia própria, da que decorrem desejos expansionistas supostamente civilizadores. Em todas as culturas parecem ter havido variações deste modo de pensar. ― Qual a ideia que lhe subjaz?
Descobrimos tratar-se da ideia do Outro como total e radicalmente diferente de mim! O Outro aparece como aquele que é perigoso, atentatório dos nossos princípios, diferente e, portanto, rejeitável. Verificámos que as sociedades se constroem precisamente com base nesta rejeição. Ficou claro que a ideia de que o nosso espaço comunitário é uma identidade que nos protege é fortíssima. Legitima rejeitar o outro, matá-lo inclusivamente, destruí-lo nas suas características culturais, políticas ou idiosincrásicas. Vivemos em sociedades que são profundamente racistas pela sua forma de organização e que rejeitam o outro por dever de nacionalismo ou auto-preservação.
Como é que podemos abandonar este modo de pensar?
Trouxe então à colação um excerto do livro Para una História de la Piedadda filósofa María Zambrano: “A ideia de que o homem é, acima de tudo, consciência e razão levou a que o homem só se considere semelhante a outro homem. Mas o processo não acaba aí, pois, como as diferenças entre os homens subsistem, há raças, nacionalidades, culturas, classes sociais e diferenças económicas, chegamos ao espectáculo bem visível da sociedade actual. Apenas sabemos lidar com aqueles que são praticamente uma reprodução de nós próprios. O homem moderno, ao assomar-se ao mundo, vai à procura de um espelho que lhe devolva a sua imagem, e, quando não a encontra, é um desconcerto! Frequentemente, quer partir o espelho! Tornamo-nos terrivelmente incapazes de suportar que existam homem diferentes de nós. Inventou-se, para encher esse vazio, a tolerância, palavra favorita do léxico do homem moderno. Mas a “tolerância” não é compreensão nem trato adequado, é simplesmente manter a distância respeitosamente, isso sim, com aquilo com o qual não se sabe tratar.” (pp. 18 e 19)
Já não chegam os caracteres para dar conta das reflexões que a partir daqui surgiram…
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)