Longe vão os tempos dos cartazes de Toulouse Lautrec ou de Mucha, que tanto nos maravilham. Na sua época eram bens perecíveis, meros papéis que se colavam a muros e paredes, anunciando um espectáculo no Moulin Rouge ou uma peça com a diva Sarah Bernhardt. Verdadeiras obras de arte, aí ficavam à mercê da intempérie ou do vandalismo dos transeuntes.
Hoje em dia não vale a pena gastar dinheiro em cartazes ou flyers, as redes sociais tornaram-se o meio privilegiado de divulgação. Lamentavelmente, a componente da divulgação tornou-se ingrediente indispensável para singrar em qualquer que seja a actividade profissional. Rendida a esta evidência, e fazendo um esforço enorme para ultrapassar a minha aversão, resolvi frequentar um mini-curso on-linede escrita criativa para adquirir competências na área do marketing digital. No módulo de “Escrita para a web”informaram-me da chamada “Lei Fundamental da Internet”. Confesso que apesar do meu desafecto instintivo por este tipo de actividade, não me encontrava preparada para o que se seguiu. A Lei Fundamental da Interneté: “não fazer o leitor pensar”.
Da enxaqueca que se abateu sobre mim nesse momento, ainda não recuperei. Sem qualquer pudor esta lei foi repetida nas sessões em directo, nos vídeos gravados e nos pdf’sde apoio. Dos mais de 3000 participantes, aspirantes a escritores deste curso, ninguém questionou este conteúdo. Esta instrução calamitosa ―não fazer o leitor pensar ―não causou perplexidade, não incendiou os ânimos, dir-se-ia que ninguém reparou nela. Foi acatada com a submissão dos carneiros que, ao seguir o primeiro do rebanho, se atiram do precipício. Pese embora o flagelo, acredito nas boas intenções dos mentores deste curso. O que mais me assusta é que, se calhar, até têm razão quanto à eficácia desta regra.
Com uma vida dedicada à Filosofia, não apenas à investigação mas também ao ensino, conheço bem o prazer de pensar e tudo tenho feito e continuo a fazer para despertar no outro esta delícia. A filosofia é uma actividade erótica, o prazer de pensar é gratuito e está ao alcance de qualquer um. Portanto, esta competência ―não fazer o leitor pensar ―que agora deveria adquirir, arrasou-me.
Decorria o Dia Mundial do Livro e a Biblioteca Álvaro de Campos de Tavira, na sua rubrica Encontro com Escritoresacolheu Lídia Jorge. A inevitável transição para o mundo digital foi abordada. “Ao mexerem nas novas tecnologias as pessoas acham que estão na vanguarda e o livro surge como algo antiquado” disse-nos a escritora. Contou-nos então a seguinte anedota: “Como prenda de aniversário, a mãe queria oferecer ao seu filho um livro. O pai opõe-se: ‘para quê se ele já tem um?’”
De facto, não há notícia de ajuntamentos nos interior das livrarias portuguesas. Porém, não considerando o livro um bem essencial, o nosso governo fechou as livrarias durante o confinamento. Mais tarde, resolveu atenuar a medida permitindo a compra de livros em hiper-mercados. Ficaram os leitores restringidos àquela selecção do fast-reading,primo irmão do fast-food. Como se não bastasse estarmos confinados fomos também privados, há que dizê-lo sem medo, de poder descobrir e, quiçá, adquirir bons livros. Sim, podemos comprar livros on-line, mas qualquer bom leitor sabe que isso não se compara ao encontro com as estantes de uma livraria bem apetrechada, por certo, em perigo de extinção na Lusitânia.
Ao mesmo tempo, em França, o ministro das Finanças Bruno Le Maire soltava este grito de alarme: “Afastem-se dos ecrãs! Leiam! Os ecrãs devoram-vos, a literatura nutre-vos.” Explicou que, da mesma maneira como se adestram ratos em laboratório, recebemos dos ecrãs estímulos a cada 5 ou 10 segundos que excitam os nossos receptores nervosos e aprisionam a nossa atenção. Desta forma, os ecrãs formatados tornam-nos submissos e servis. A literatura, pelo contrário, “é uma arma de liberdade”, afirmava o ministro. Porém, uma arma que se esgrime com um imenso prazer. Desenvolve a imaginação, abre-nos a mundos radicalmente novos e, sobretudo, ajuda-nos a conhecer-nos um pouco melhor.
Estou convicta de que existem livros que são como espelhos mágicos, neles não encontramos apenas o que somos, encontramos o que podemos vir a ser e o que podemos deixar de ser. Escolhemos. Podemos esculpir-nos.
No referido Encontroon-line, Lídia Jorge mostrou-nos como “o mundo actual faz de cada pessoa uma espécie de pára-raios de exigências múltiplas, ligados a variadíssimos universos ao mesmo tempo. Comportamo-nos como animais assustados. Estamos permanentemente a defendermo-nos.” Mas o mais perigoso de tudo isto é “o empobrecimento da subjectividade”, afirmou.
Em que é que consiste a subjectividade? E porque é que constitui um empobrecimento perdê-la?
A subjetividade é o nosso mundo interno, quer dizer, é aquilo que somos por dentro. Este mundo interior é composto por emoções, sentimentos e pensamentos. Como sujeitos livres e pensantes somos também seres criativos. A criatividade exercitada através do pensamento, da imaginação e da acção afecta-nos a nós e ao mundo circundante. Graças ao seu mundo interior, a pessoa não age somente movida por forças exteriores, mas actua também a partir de dentro, a partir do núcleo da sua própria subjectividade. A partir do momento em que alguém é o autor das suas acções, possui uma identidade que foi alcançada por si, que não pode ser reduzida a uma análise objectiva e por isso resiste à definição. Esta resistência à definição, esta irredutibilidade, é precisamente aquilo que torna cada um de nós um ser único.
Tudo isto fracassa se perdermos a subjectividade.
Se os ecrãs formatados contribuem para a perda da subjectividade, tornando-nos seres indiferenciados e servis, os livros, pelo contrário, estimulam o mundo interior e a nossa unicidade. Os livros são agentes libertadores. Lídia Jorge diz: “Os livros são um meio revolucionário, uma revolução que veio dos céus”. Atrevo-me portanto a interpretar a frase da escritora do ponto de vista da astronomia. Os livros estão em revolução como os astros, são capazes de fazer com o ser humano o que Copérnico fez com as nossas crenças planetárias. Como é do conhecimento de todos, a revolução copernicana é a responsável pela mudança de paradigma do geocentrismo para o heliocentrismo.
É precisamente com a revolução copernicana que Kant inaugura a sua Crítica da Razão Pura. Nela o filósofo alemão aponta para o facto de, apesar de todo o nosso conhecimento se iniciar com a experiência, isso não significar que todo ele derive da experiência. De facto, existe um conhecimento a priori, quer dizer, independente da experiência, no interior de cada sujeito, que estrutura e dá forma aos dados que provêm da experiência. Por conseguinte, esta estrutura inata e interior a cada um de nós é condição sine qua nonde cada acto perceptivo.
Porém, com a interferência constante de e-mails, sms, WhatsApp, Instagrame variadíssimas outras formas de estarmos ligados à Internet, acabamos por descurar esse núcleo que nos estrutura. Já não nos conseguimos concentrar, sossegar, e aceder ao nosso mundo interior. Ficamos, portanto, muito mais vulneráveis a alguém que saiba como nos manobrar. É muito perigoso que os bibliotecários, os académicos, os leitores sejam considerados, e cito uma vez mais a escritora Lídia Jorge, “gente antiquada e prescindível”.
Em abono do objecto de nutrição (livro) favorito dos novos dinossauros (os leitores) permitam-me realçar o seguinte: um livro não tem cabos, circuitos eléctricos ou bateria, portanto, pode ser utilizado por tempo indeterminado sem necessidade de ser recarregado. Nunca tem falhas no sistema, nunca precisa de ser reiniciado ou de fazer actualizações. Compacto e portátil pode ser utilizado em qualquer lugar. É feito de materiais totalmente recicláveis. Para conhecer mais vantagens deste dispositivo “bio-óptico” de conhecimento por favor aceda a: https://www.youtube.com/watch?v=YhcPX1wVp38
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico