A Rússia e a China passaram a última década a fortalecer laços comerciais, políticos e militares, a desenvolver infraestrutura energética em território russo e, a consolidar continuamente a parceria estratégica entre si. Esta relação foi, de resto, reforçada pela declaração conjunta de 4 de Fevereiro, apenas três semanas antes da invasão da Ucrânia, a afirmar que a “amizade entre os dois Estados não tem limites”. Assim sendo, aquando da eclosão da guerra, a questão impôs-se: a China viria a manter intactos os seus laços com Moscovo e, a tornar-se numa fonte de apoio para a economia russa, mesmo face às sanções e aos boicotes aplicados por muita da comunidade internacional? Até aqui, a resposta a esta questão tem sido claramente afirmativa.
Embora apele a soluções de paz para a Ucrânia, Pequim nunca condenou a Rússia pela invasão, votou a favor de Moscovo nalguns votos internacionais e, veio até criticar as sanções como sendo “unilaterais” e “ilegais”. Apenas duas semanas após a invasão, Wang Yi, Ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) chinês, afirmava que a Rússia é “a mais importante parceira estratégica” da China e que os dois países desenvolveriam “uma parceria abrangente”. Este compromisso foi, de resto, reafirmado pelo exercício militar conjunto de 24 de Maio, junto ao espaço aéreo do Japão, durante a visita de Biden a Tóquio, que foi uma clara asserção de que a relação entre os dois países não foi fragilizada pela guerra.
Desde cedo, Pequim anunciou que iria continuar cooperação comercial normal com a Rússia. Da invasão em diante, o comércio entre os dois países tem vindo a crescer, com a China a expandir as suas importações de carvão e gás russos e a tornar-se num destino preferencial para petróleo russo. A China já veio dizer que cooperará com a Rússia em energia, finança, C&T e, no setor técnico-militar e, segundo o Washington Post, Pequim tem vindo a trabalhar para facilitar atividade comercial russa em território chinês e, terá ordenado a um número de administrações provinciais e municipais que expandam laços económicos com a Rússia. Os dois países assinaram recentemente um novo acordo comercial, com o Global Times, da China, a citar especialistas para dizer que China e Rússia estão a avançar para cooperação ao longo de toda a cadeia industrial e, que as empresas chinesas tenderão a preencher o vácuo deixado pelos europeus no mercado de importações russo. Também tem vindo a haver o avanço dos laços infraestruturais entre os dois países, com a inauguração de uma ponte transfronteiriça e, com os planos para mais duas pipelines Rússia-China, o que inclui a Soyuz Vostok (mais sobre isto aqui).
Lavrov já veio dizer que Rússia e China estão a cooperar em energia, indústria, agricultura e transportes e que “tencionamos desenvolver uma infraestrutura financeira independente”, tal como aumentar “o uso do rublo e do yuan” em transações. A ‘desdolarização’ do comércio mútuo é, já de há anos, um tema habitual de cooperação entre os dois países e, parece ter vindo a expandir-se em tempos recentes, com aumentos significativos nos volumes dos câmbios yuan-rublo, aparentemente a acompanhar o uso aumentado destas moedas no comércio bilateral. Em poucos meses, a Rússia veio a tornar-se numa das economias que maior uso internacional faz do yuan, isto mesmo enquanto Moscovo pondera a compra de yuan (a par de rúpias e de liras turcas) para o fundo soberano russo, após o congelamento dos dólares e dos euros no mesmo incluídos.
Ainda em meados de Junho, o presidente chinês, Xi Jinping, falou com Putin para notar que a China pretende intensificar laços com a Rússia, cooperar em questões de soberania e segurança e, aprofundar coordenação estratégica mútua. Putin, por seu lado, ofereceu o apoio da Rússia à Iniciativa de Segurança Global (ISG), recentemente proposta pela China. A ISG visa a criação de uma arquitetura alternativa de segurança internacional, em oposição a hegemonia americana e, para além da Rússia, já recebeu o apoio de Indonésia e Paquistão, entre outros.
É muito plausível que se esteja, já hoje, perante o nascimento de um eixo Rússia-China: ou seja, um alinhamento económico e geopolítico a elevar a parceria estratégica entre os dois estados a novos níveis. Um tal contexto não garantiria assistência militar chinesa a Moscovo durante a guerra na Ucrânia, mas tenderia a suster a economia russa, e a dar, à China, acesso privilegiado às riquezas naturais russas, tal como uma relação próxima com a segunda potência termonuclear do mundo. Um eixo sino-russo tenderia a visar a transformação autocrática e multipolar da ordem internacional, com o avanço de standards autoritários ao longo do globo. E, presumivelmente, dedicar-se-ia a avançar harmonização de interesses ao longo da Ásia e de outras regiões do planeta, sob égide sino-russa. Isto é algo que, a concretizar-se, tenderia a enfraquecer drasticamente a influência global do ocidente.
Aqui, é de nota que, ao longo dos últimos anos, a China veio a construir uma vasta rede de relações ao longo do Sul Global, que é, de modo geral, o mundo em vias de desenvolvimento. Na sua conversa recente com Putin, Xi disse que a cooperação China-Rússia devia passar pela promoção de solidariedade e cooperação entre economias de mercado emergentes e nações em vias de desenvolvimento. E, algum tempo depois, Wang Yi, o MNE chinês, encontrou-se com Lavrov e, segundo a agência noticiosa estatal chinesa Xinhua, Yi terá dito que os dois países deviam cooperar em prol dos interesses comuns dos países em vias de desenvolvimento, que, terá alegado, têm a aspiração partilhada de se oporem a hegemonia. O próprio Lavrov já tinha vindo falar destas regiões do globo, quando aludiu à importância dos laços que, segundo disse, a Rússia tem ao longo de África, América Latina e Ásia. Por sua vez, Putin veio dizer que Moscovo tenciona construir parcerias ao longo destes continentes e, em inícios de Junho, falou com o presidente da União Africana sobre, entre outros, o futuro das relações Rússia-África. O reforço dos laços com África foi, de resto, avançado pela recente visita de Lavrov ao continente.
É assim provável que um alinhamento sino-russo venha a dirigir o seu apelo a muito do Sul Global e, a procurar agregá-lo ao seu redor. De resto, o mesmo Sul Global tem vindo a ser visado por campanhas de desinformação russa (ecoadas e amplificadas pela própria China), a racionalizar a guerra na Ucrânia e a fomentar sentimentos anti-ocidentais.
Independentemente da direção que Rússia e China venham a seguir, parece ser claro que o ocidente tem de fazer aquilo que, em décadas recentes, raramente tem feito: oferecer opções consistentes de desenvolvimento e comércio ao mundo em vias de desenvolvimento.