Na crónica anterior – e nas seguintes, se Deus me der saúde – eu e o António Homem Cardoso (um escreve, o outro fotografa), iremos viajar pelo Algarve seguindo pela via férrea que arranca de Vila Real de Santo António e morre lá para Barlavento, em Lagos, depois de uma centena e meia de quilómetros. Foi uma opção, como outras haveria, por exemplo a travessia algarviana que o escritor Manuel da Fonseca realizou por estrada nos idos anos sessenta,(1) precedendo o nosso Prémio Nobel que também plasmou em frases o que pode igualmente ser contemplado com olhares: este Algarve, Reino tradicionalmente desprezado pelos poderes centrais, mas sempre amado, recordado e cantado pelos seus filhos.
“[…] Sou
desta terra ou desse mar vizinho de que
me chegam súbitas lufadas
(Se a felicidade
existisse seria assim)?
Ou sou do casamento
Da terra com o mar?
Não sei
Só sei
Ah sim! que sou daqui […].” (2)
Na conversa do mês passado afirmei que a resiliência é uma qualidade que não deve faltar a um viajante, mas há limites para tudo. Foi este o caso. Contrariando a minha expectativa de contemplar um cenário de castelos, fortalezas e igrejas mal pousasse o pé na estação de Castro Marim, ao invés disso, encontro-me no meio do nada. Nem mar, nem sapal, nem serra e muito menos monumentos. Apenas uma velha plataforma que se defronta com um despido vazio e, ao longe, uns cavalitos que abanam as caudas. De repente faz-se luz no meu espírito: nem todas as paragens devem ser estações propriamente ditas, com guichés e guardas e bares, e toda a parafernália associada. Algumas devem ser apenas apeadeiros, estruturas solitárias mantidas de pé pela inércia da história, esperando que o projecto de electrificação e modernização da linha lhe venha a atribuir papéis mais relevantes ou que a mate de vez.
Peguei no telemóvel e liguei ao António a avisá-lo que ia desistir de Castro Marim porque a estação não dava acesso à vila, mas com isso só ganhei uma reprimenda: que não! que tínhamos de ir de qualquer maneira: a pé, de bicicleta ou de carroça, mas ir. Bom, fico avisado. Há que descobrir maneira de lá chegar sem utilizar o automóvel mas, para já, o que quero é ir até Cacela. Estou entusiasmado com a expectativa de gozar as vistas do castelo, da igreja, o panorama da ria e tantas outras visões nostálgicas e belas. Ah, lá vem o comboio, finalmente. Meia dúzia de minutos depois de arrancar, o comboio abranda. Estou em Cacela.
Dou um salto optimista para a plataforma. A estação está bem conservada e a linha ali civiliza-se, torna-se dupla, para permitir o cruzamento de comboios, penso eu. Meto-me por uma rua a descer e ando uns bons minutos, mas… mas… tudo me parece demasiado moderno e urbano. Como tenho sede, utilizo o método do Manuel da Fonseca e sento-me numa esplanada mas ao contrário dele não peço um brande, mas uma imperial espumosa. Pergunto à simpática atendedora qual o melhor caminho para o forte de Cacela, para a Igreja, para a Ria Formosa, em suma. Tem carro?, pergunta ela. Respondo-lhe que vim de comboio e a minha interlocutora hesita. Pois, sem carro é difícil. Cacela Velha ainda é um bocado longe daqui. Pra’í uma hora a andar. Cacela Velha! Então há uma Cacela Nova? espanto-me eu. Que sim. Que eu estou em Vila Nova de Cacela. Que são coisas muito diferentes, etc e tal.
Já é preciso ter azar! Beberrico a minha loira enquanto me agarro ao dr. Google. Tudo fica logo clarinho. A Vila Nova de Cacela é uma criação do século XX. Cacela-a-Velha apesar do seu passado ilustre quer do ponto de vista civil, quer religioso, ficou relegada para segundo plano, desde que o Marquês de Pombal no final do século XVIII, de chofre, transferiu várias das suas centenárias competências para a novíssima Vila Real de Santo António.
Acabo a minha bebida e, voltando desanimado sobre os meus passos a caminho da estação, vou pensando que nem vale a pena telefonar ao António e que o melhor é começar a alugar uma carroça e um cavalo valente que me possa transportar de forma tradicional até Cacela. Também prometo a mim mesmo que, se a próxima estação me deixar mais uma vez longe do meu objectivo, se acabarão para mim as viagens ferroviárias no Algarve.
Quando me aproximo da estação vai a sair um comboio em direcção ao Sotavento pelo que não me apresso. E, de súbito, talvez pelo ruído intenso da composição, percebo melhor um poema de Teresa Rita Lopes, escritora nascida em Vila Nova de Cacela e que recorda a sua infância ao som de um comboio tonitruante que lhe desperta memórias antigas:
“[…] O passar do comboio que quase atropela a casa desencadeia em
meu corpo um terramoto de prazer
Olha! O maquinista
ainda é o mesmo e sorri para mim!
Acena-me
Com ele embarco e viajo para um sítio qualquer que não é
meu passado nem sequer meu futuro
mas sou eu
viajando ao meu encontro (3)
Esta Vila Nova é indubitavelmente um produto da via férrea e da estrada nacional 125. Entre estes dois fenómenos da modernidade lançou as suas raízes, cresceu daqui e de acolá até merecer o título de “Vila” e, ipso facto, retirar à velha Cacela, desde sempre cantada pelos poetas, a sua importância administrativa. Mas pertencer a um sítio é que é o importante, seja ele moderno ou muito antigo. Interessa é saber aonde, num desejo de posse e protecção, se firmou a primeira e frágil raiz, num instinto que nos oferece para todo o sempre um sítio do qual nos orgulhamos de ser filhos e ao qual sempre poderemos regressar.
“[…] Aqui o meu centro do mundo
Como Anteu aqui enterro as raízes
de quem sou […].” (4)
(1) As referências bibliográficas podem ser encontradas no texto publicado no Postal em 5 de Novembro passado.
(2) Teresa Rita Lopes, O Sul dos meus sonhos, in Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, pp. 32-33
(3) LOPES, op. cit., pp. 32-33
(4) LOPES, op. cit., pp. 32-33
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico