O Natal, em todos os países do mundo onde é celebrado, constitui um tema interminável. Quantas antologias recolheram textos de poetas, escritores e dramaturgos que, ao longo dos séculos, se pronunciaram acerca de todas as motivações do Natal? Mas em nenhuma antologia de língua portuguesa existe a breve evocação de Manuel Teixeira Gomes (1860-1941) que só com as palavras necessárias construiu o cenário para sintetizaros sentimentos mais profundos que emergem nesta quadra do ano.
Retomo o tema com alguns desenvolvimentos. A presença literária de Teixeira Gomes ficou, muitas vezes, ofuscada pela militância partidária para a implantação da República (1910); o desempenho da carreira diplomática, (1911 – 1923), no período trágico da Iª Guerra Mundial, à frente da embaixada de Portugal em Londres e, entre 1923 a 1925, o exercício da Presidência da República, repleto de conflitos nacionais e internacionais.
Enquanto Chefe de Estado, enfrentou crises partidárias e militares que desencadearam sucessivas quedas e substituições de governos. Procurou a reconciliação da classe política e das Forças Armadas. Perante o impasse, a agitação e a insegurança, no dia 10 de Dezembro de 1925, apresentou a demissão. Meses depois, o Exército implantava a ditadura militar e entregou, depois, o poder a Salazar para outra ditadura. O regime durou quase meio século. Até ao 25 de Abril de 1974.
Triste, amargurado, desiludido, Teixeira Gomes (proprietário abastado e lavrador rural do Algarve) resolveu, então,viajar de país em país. Foi o que chamou «a grande Primavera da Liberdade”. Transformado num cidadão anónimo, avançou para o Mediterrâneo. Apetecia-lhe voltar aos museus, às catedrais, aos palácios, aos jardins. Ver e rever, sem pressa, monumentos e paisagens. Usufruir os acasos do espetáculo humano das ruas. A curiosidade insaciável associada à energia física levaram-no, finalmente, à aventura da descoberta do Norte de África. Fazia «cerca de dez quilómetros de marcha diária, caminhadas sem fim até ao salutar cansaço que prepara os sonos profundos de onde se ressurge mais rijo e satisfeito”. Mas ao acentuar-se o envelhecimento mudou, por completo, a vida que levava ao ar livre para – é melhor citá-lo – continuar «saudável, próspero e feliz como um deus que regressou do Olimpo».
A reta final decorreu em Bougie, atualmente Bejaia. Tive a honra de ter sido convidado pelo Presidente Jorge Sampaio – no último dia do exercício do segundo mandato — para ser o orador quando ali foi colocado um monumento à memória de Teixeira Gomes, da autoria da escultora Irene Vilar. Teixeira Gomes em Bougie morou no pequeno Hotel l’Etoile que possuía o conforto indispensável. O quarto tinha (e tem) o número 13 e uma janela para o mar. A vista abrange a cordilheira de Kabila, sempre coberta de neve. Passou a consagrar-se, em tempo inteiro, à escrita. Com uma disciplina diária, de 1931 a 1941, entre os 70 e os 80 anos, na idade em que todos acabam, retomou criação literária.
Colaborava em jornais e revistas de oposição à ditadura. Reeditava livros que lhe deram renome intelectual. Publicava novos livros, que tiveram o maior êxito, provocaram surpresa e causaram escândalo literário e político, tais como Maria Adelaide e Novelas Eróticas. Permanecia na íntegrao homem rebelde, insatisfeito, frontal, aberto ao mundo, «com todos os sentidos despertos» – assim se definiu – «para glorificar o esplendor da luz e para divinizar quantas maravilhas ela nos revela, desde o cristal das fontes, que fecundam a terra sequiosa, até ao corpo humano, carne ambulante e sensual, onde se encerra e se propaga a essência da razão e do amor». Ambos os livros foram condenados pela Igreja, proibidos pela Censura e confiscados pela PIDE.
Teixeira Gomes, num dos seus últimos livros, com o título simbólico Regressos, reuniu textos acerca das muitas viagens que fizera para descobrir Portugal. Conhecer as terras e os tesouros que as colocaram no mapa e onde, também, exalta a língua portuguesa e a sua projeção no Brasil. Em todas as circunstâncias é um livro notável. Assim o referiu: «tento agora escrever e provavelmente nunca terminarei este livro». «São as impressões» – esclareceu Teixeira Gomes — «mais remotas da mocidade (ou as primeiras impressões de paisagens e monumentos revistos pela vida fora), colhidas no meu país, e lembradas longe dele, não podia deixar de incluir algumas páginas consagradas à minha terra natal. Como ali faltam os monumentos, diligenciarei evocá-la em paisagens».
É o caso do pequeno grande texto que transcrevemos na integra: «Natal: noite de levante frígido, anavalhado. Sobre a ponte. A lua espelha-se na água com um verde pálido, cuja vista dá acidez ao vento. O rio, em Ferragudo e na pequena enseada do Convento, coalhado de caíques arribados, que ardem todos com as chamas levantadas sobre o convés pelas “campanhas” que preparam a ceia. Céu desmaiado, sem estrelas, com o luar a escorrer como um líquido sobre vidro …»
Só isto. Um barco na enseada e os pescadores que foram parar ao Algarve, a acenderem o lume para a ceia. Teixeira Gomes recordava o que vira, próximo da sua casa em Portimão, entre o rio e o mar, entre o Arade e o Atlântico que já é quase Mediterrâneo. Deixara o resto para a imaginação de qualquer um de nós. Tudo coube em muito poucas palavras. Os pescadores não esqueciam naufrágios e outras fatalidades no alto mar e, sobretudo, a família em casa, em redor da mesa da consoada.
Era o diálogo entre todos os que passaram pelas suas vidas. Falavam uns com os outros. Ou recolhiam-se em silêncios. Uns breves. Outros prolongados e sufocantes. Surgiam os que partiram e já não voltam mais. E os que se encontravam longe e deviam estar perto. Os mortos e os vivos. As horas tristes e as horas alegres. Bastou dizer que era noite. E dizer apenas que também era Natal.
*Carteira profissional número UM; sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa