Há pouco mais de 50 anos, falava-se no princípio do futuro. O escritor Mário Ventura, no seu romance “O Despojo dos Insensatos”, antecipava criticamente o cenário do que poderia vir a tornar-se um certo Algarve a partir da descoberta turística.
Como acontece na vida das pessoas, a beleza está por vezes na razão direta da sua perdição. E no caso de Albufeira, a princesa tinha tudo para ter um final feliz. Sedutora e bela, ninguém lhe ficara indiferente. Toda a gente caiu a seus pés: investidores de oportunidades legítimas, banqueiros, hoteleiros, comerciantes, empresários da construção e, por arrasto inevitável, especuladores sem escrúpulos, patos bravos, oportunistas, arrivistas, videirinhos e até pequenos galãs de província.
Ninguém resistiu ao charme e ao encanto de uma cidadela a que os romanos deram o nome de Baltum e os árabes Albuhera.
Dessas raízes históricas pouco resta, e hoje, Albufeira, romana ou mourisca, é um mosaico multicultural de povos provenientes das mais variadas paragens. O turismo falado em muitas línguas transformou e veio agitar a pacata vila de pescadores, que se transformou num dos maiores destinos turísticos do país.
Conta um prospeto da Região de Turismo do Algarve, que num tempo já muito distante, em 1801, um escritor inglês, Robert Southley, movido pela curiosidade e pela aventura, foi parar à prisão em Lagos acusado de vadiagem. O turista ou mero viajante, naqueles anos, era uma espécie ainda por inventar. E seria preciso esperar quase dois séculos para que as praias do Algarve passassem a abrir-se à curiosidade e à descoberta estrangeira.
Foi no começo da década de sessenta. Por essa altura, Albufeira rodava à volta do mundo nas ondas de uma canção. Uma das maiores estrelas da música popular anglo saxónica de então, cantava-a num refrão que dava a conhecer ao mundo a terra do sol e do mar azul.
Era em Albufeira que o cantor vinha passar as suas férias de verão. E atrás dele ou por causa dele, que ali comprou casa e fixou residência prolongada, vieram outras estrelas e celebridades das artes, da música e do cinema, que projetaram o seu nome como destino turístico de massas a pouco mais de duas horas dos principais mercados emissores da Europa. Metade do tempo que se gastava de Lisboa ao Algarve em automóvel.
Ainda não havia aeroporto em Faro e as estradas de Lisboa para sul eram uma caminhada de longas horas e muitos sobressaltos. Para se conquistar o paraíso das praias de águas quentes e transparentes, era preciso atravessar – literalmente – o Purgatório. Uma terreola, por entre curvas estreitas de uma estrada que liga o norte ao sul, antes de chegar a Paderne. O Algarve morava verdadeiramente num reino à parte e longe de tudo. A autoestrada só chegaria quase 40 anos depois, e a Via do Infante ficou pela metade para servir a Expo92, de Sevilha.
Descoberta assim pelos ingleses que a colocaram no mapa dos destinos de eleição, Albufeira depressa se internacionalizou como destino de sol e praia. Onde faltava quase tudo: estradas, luz, água, saneamento, hospitais. Depois foi o que se conhece.
Com o aeroporto de Faro inaugurado em 1965, a aldeola cresceu e transformou-se rapidamente na capital massificada do turismo em Portugal, engolida pela pressão e especulação da imobiliária turística. Quase sem regras e raramente acompanhada pelo devido escrutínio do ponto de vista político e do ordenamento urbanístico.
Hoje, já não se vive com o credo na boca para ali se chegar, nem se morre de salmonelas. Mas a explosão do turismo trouxe consigo novos problemas, e das memórias do passado que resistiu aos sismos, às guerras e aos tempos, quase nada ficou.
A cidade foi uma das praças algarvias que os mouros conservaram mais tempo em seu poder. Depois da queda de Faro, cercada por todos os lados, os seus habitantes foram perseguidos, e os que escaparam fugiram a esconder-se numa caverna denominada Cova do Xorino, situada por baixo das rochas no lado sul, junto ao mar.
Os efeitos dos séculos, da barbárie e dos terramotos, destruíram a quase totalidade dos muros do castelo. Mas a cidade oferece no entanto ainda hoje um interessante núcleo histórico que seria a sua zona fortificada mais primitiva e um conjunto patrimonial religioso – praticamente todo reconstruído – de que se destacam a sua igreja matriz e a capela da Misericórdia, além da igreja de Sant’Ana e da ermida Nª Sra da Orada, padroeira dos pescadores. No velho tribunal, funciona atualmente o museu das Artes e Ofícios, e instalado na antiga sede da câmara municipal, está o museu de arqueologia onde se podem observar peças ligadas à história da cidade desde as suas origens mais remotas até ao século XVII. A ermida de S. Sebastião é o museu de arte sacra do município.
Há ainda o culto a Frei Vicente de Santo António, ou simplesmente Beato Vicente, que nasceu em Albufeira e morreu mártir em Nagasaki, no Japão, onde foi missionário da Ordem de Santo Agostinho.
Da Torre da Medronheira, dos miradouros do Rossio, do Pau da Bandeira ou da Torre do Relógio, estende-se uma vista panorâmica sobre a baía de Albufeira que tem para oferecer das mais belas praias do Algarve numa extensão de quase 30 quilómetros: as praias do Peneco, da Coelha, do Castelo, do Evaristo, da Maria Luísa, dos Arrifes e a de S. Rafael, são exemplos a assinalar.
Mas apesar dos avisos e das calamidades conhecidas, parece que pouco se aprendeu. Continua-se a insistir ou a permitir – que vai dar ao mesmo – nos erros urbanísticos do passado. Um dia a terra vai voltar a tremer e a derrocada, com muita probabilidade, pode suceder outra vez.
É bom lembrar que o sismo de 1755 não deixou pedra sobre pedra. Albufeira foi a cidade algarvia mais fustigada. O mar invadiu a vila com ondas que atingiram 10 metros de altura destruindo quase todos os edifícios, tendo ficado de pé somente 27 habitações e estas muito arruinadas. A igreja matriz, antiga mesquita árabe adaptada ao culto cristão, onde a população se refugiara, desabou causando 227 vítimas.
Menos de um século depois, na guerra civil entre absolutistas e liberais, Albufeira foi cercada e atacada em 1833 pelos soldados do Remexido, numa disputa que danificou profundamente a vila, “abrasando a maior parte das casas nobres que aformosavam as ruas”, no dizer de José Baptista da Silva Lopes. E o historiador algarvio acrescenta: “quebraram o pacto de rendição e no dia 27 de Julho mataram 74 pessoas de todas as idades”.
Se deixarmos o litoral e caminharmos para lá da 125 em direcção a Paderne, construído sobre um esporão rochoso, contornado pela ribeira de Quarteira, fica o castelo. Um símbolo que dizem ser um dos sete que figuram na bandeira portuguesa, juntando-se às fortalezas de Estômbar, Aljezur, Albufeira, Cacela, Sagres e Castro Marim, todas na região do Algarve.
Seja ou não assim, o castelo de Paderne tem origem árabe e foi habitado até ao século XIV e hoje, apesar dos sucessivos restauros, o seu estado de conservação encontra-se degradado. Exemplo típico da arquitetura militar em taipa, o antigo forte apresenta apenas alguns panos de muralhas, bem como o torreão de entrada e paredes mestras da sua ermida no interior.
Restam as aldeias como Paderne, imune ao rebuliço e à agitação noturna dos bares da Oura, com o seu casario tradicional, a igreja da Esperança, a ermida do Pé da Cruz, a Fonte e a Azenha. E uma pujante tradição cultural à espera do eternamente prometido e aguardado museu do Barrocal com a marca de Siza Vieira.
Ao fundo, no vale, a meio caminho entre o mar e o barrocal das amendoeiras, corre a antiga via romana por sobre uma ponte medieval que cruza a ribeira de Quarteira.
Testemunhas silenciosas de uma marca identitária envergonhadamente escondida.
Fontes: “Corografia do Reino do Algarve”, J.B. Silva Lopes; “O Despojo dos Insensatos”, Mário Ventura; “Albufeira, percursos de uma história secular”, Idalina Nobre; outras.