Estará o meu leitor lembrado que na minha crónica de Agosto passado eu e o António Homem Cardoso desenvolvemos uma lenta conversa, enquanto deambulávamos ao longo de um rio encantado na belíssima Tavira. No final do passeio lancei-lhe o desafio de irmos juntos dar uma volta pelas “mais lindas cidades do Algarve”, a fotografar e a discutir filosofia. Estará ainda lembrado que o António, após uma breve hesitação, afirmou que lhe parecia uma excelente ideia.
Ora bem, este é o ponto da situação: há dois meses, ambos concordámos em algo que não sabíamos bem o que era. Acresce que a conversa teve lugar numa noite cálida de Verão – propensa à fantasia – e agora faz mais frio e não apetece deambulações. Que fazer?
“Como? Desculpe… Quem é o Mestre Homem Cardoso?! Ah, não sabe? Caro leitor, esse artista – que faz o favor de ser meu amigo – é um dos grandes fotógrafos portugueses, com 50 anos de actividade e mais de 100 livros publicados… Mas está tudo na “net”, caríssimo leitor, é só fazer dois cliques!”
E, aliás, o Homem Cardoso tem fotografado o Algarve desde tempos imemoriais, o que provo pela fotografia da Ermida de Santo António, em Castro Marim. Quem a conseguirá reconhecer, assim despida dos seus atavios modernistas?
Bem, voltemos à vaca fria. Andava eu nestas lucubrações quando recebo um telefonema do António. Diz-me ele: “Então quando é que arrancamos para as cidades algarvias?”.
Ena pá! fiquei mesmo aflito. Arrancar para as “cidades mais lindas do Algarve”. E como é que diabo vou eu escolher, de entre tantas, o grupo das “cidades mais lindas”
Felizmente que o António tem sempre umas cartas na manga e desta vez não foi excepção:
“Estive a lembrar-me” – disse ele – “que aqui há um bom par de anos, o meu querido Manuel andou pelos Algarves a escrevinhar umas coisas que depois foram publicadas nuns jornais, não me lembro quais”.
“Mas quem é esse teu querido Manuel?”
“O Fonseca! Não estás a ver quem é?”
“Ah, o Fonseca… Claro que estou” – respondi eu, abespinhado. – “Mas em que é que isso nos interessa, António?”
“Interessa, porque eu sei que esses textos foram publicados em livro. Tu arranjavas o livro e tiravas umas ideias para as tuas crónicas. E aí tinhas uma possível abordagem cultural ao Algarve. Porque a literatura é cultura. Ou não?!”.
“Sim… pois… claro…” – digo eu, hesitante. – “Tirar umas ideias do livro do Manuel da Fonseca será eventualmente possível, mas complicado e sujeito a suspeição de plágio. Mas vou analisar a coisa, António. Prometo”.
E terminou assim a nossa conversa telefónica. Deixe-me dizer-lhe, caríssimo leitor, foi como abrir a caixinha de Pandora. Mal pude, e para honrar a minha promessa, arregacei as mangas e numa biblioteca pedi emprestado o livro do Manuel da Fonseca que se chama, exactamente: Crónicas Algarvias. Leitura interessante, embora um pouco datada (foi escrito em 1968). O autor fez o trajecto do Algarve, de Sotavento a Barlavento, em transportes públicos, viajando sobretudo pelo litoral e escrevendo. Escrevendo o que vê, o que escuta e o que sente.
Já que estava no sítio certo – biblioteca – espreitei outros autores e logo me arrependi porque, apesar do volume bibliográfico não ser muito grande, era suficientemente volumoso para tornar incongruente a escrita de crónicas – que se querem ligeiras – baseadas em tal pletora de ficção, de ensaio, de poesia… Mesmo assim, para além das Crónicas1, consultei, com a firme intenção de os vir a utilizar como fonte de inspiração, mais quatro livros: A Viagem a Portugal do Saramago2,A Viagem ao Algarve3de Diego Mesa, uma colectânea coordenada por João Carvalho, Viajantes, Escritores e Poetas4e, last but not the least”, o Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 19275.
Fica assim bem evidente para o leitor (espero eu), o imbróglio em que me fui meter quando levei a sério uma converseta que, da minha parte, não fora mais do que um delírio pós-prandial. Mas, enfim, o mal está feito e devo agora desenvencilhar-me desta situação. Só há, aliás, um caminho honroso: o de escolher, visitar e descrever o melhor possível as “mais lindas cidades do Algarve”. Ora aí está!
E como faço eu isso? Começo pelo Barlavento, pelo mítico rochedo de Sagres com o indecifrável grão-mestre visando o largo oceano, e venho por aí fora, cidade a cidade, local a local, esquadrinhando as serras, os barrocais, as praias, os monumentos, os costumes, até que, arrastado por irrefreável impulso, caia exausto no Guadiana?
Não! Não dá. É impossível. Isso seria uma espécie de Odisseia e é até provável que os leitores fugissem bem depressa das minhas croniquetas. Debatia-me eu nestes dilemas, quando o sábio António me mandou o seguinte sms: “Vamos de comboio, de costa a costa. É ecológico e económico”.
Juntamente com esta determinação enviou-me uma única fotografia, a que ilustra a crónica de hoje. E foi tudo. Eu que me desenrascasse…
“De comboio?!” Foi quando o automobilista em mim se revoltou e dedilhei furioso: “Estás louco. De comboio não vou!”
Se o António recebeu a minha resposta ou não nunca o saberei. Talvez a mensagem tenha entrado directamente para esse Mar dos Sargaços a que se chama spam. De qualquer dos modos, o seu silêncio deu-me tempo para pensar e, sobretudo, para tentar entender o significado da imagem que me enviara, essa ponte enigmática suspensa entres mundos: terra, água, ar…
Mas muitos outros mundos lá estão vibrando, a chamar a nossa atenção. A realidade e o seu onírico reflexo. A separação e a travessia. A estrutura e o caminho. O homem e a natureza. E outros ainda, tantos quantos conseguirmos pensar. Peço emprestado ao “Querido Manuel” uma bela descrição que se enquadra muito poeticamente na minha reflexão. Diz ele:
“O Sol do poente, estilhaça de lume os vidros das janelas. Intenso, vermelho-vivo, irradia do horizonte. Penetra tudo. Tinge o mar, o céu, as casas, e há um momento em que tudo, natureza, casas, pessoas, se aquieta como que num espanto”.6
Obrigado, Manuel da Fonseca. Eu já escolhi o meu sentido: há um homem que caminha pensativo. Parece descer de um plano mais elevado para outro mais baixo. Os dois caminhos, o real e o seu reflexo vão encontrar-se no horizonte. “Tudo se aquieta como que num espanto”.Soberbo! O espanto do real e o real do espanto.
Está decidido, António. Vamos de comboio.
(1) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986.
(2) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985
(3) Diego Mesa, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014
(4) João Carvalho et al., Viajantes, Escritores e Poetas, Colibri
(5) Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1927 .
(6) Fonseca (1986), p. 186
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico