Um Tempo a Fingir, terceiro romance de João Pinto Coelho, publicado pela Dom Quixote em Outubro de 2020, finalista do Prémio da União Europeia para a Literatura 2021, recentemente anunciado como semi-finalista do Prémio Oceanos, é um regresso do autor à Segunda Guerra. Da Polónia do seu anterior romance, Os Loucos da Rua Mazur (Prémio Leya 2017), passamos agora à Toscana em 1937, ao burgo de Pitigliano que assenta, como um ninho de águia, no cume de um rochedo. Annina Bemporad, protagonista e narradora, assina estas memórias escritas na primeira pessoa, pontualmente rectificadas pelo irmão Ulisse, em que nos conta a sua vida desde que se despediu da infância, quando acorda a meio da noite com o estampido de um tiro e descobre que o pai se suicidou, ao mesmo tempo que o seu próprio corpo começa a sangrar: chegou-lhe pela primeira vez o período.
O despir da infância implica ainda que Annina trabalhe como costureira, como forma de garantir sustento para a sua família. Annina é uma judia ambiciosa e bonita, cujo corpo será cada vez mais cobiçado com o passar dos anos, e eventualmente aprende que o pode usar como moeda de troca – é esse mesmo corpo que a poderá salvar numa Itália que se começa a ressentir da ascensão de Mussolini, manietado por Hitler. Pitigliano, historicamente conhecido como a Pequena Jerusalém, pois acolheu, durante séculos, uma importante comunidade judaica, não deixou ainda assim de sentir as convulsões anti-semitas, como quando as Leis Raciais anunciam a chegada dos nazis a território italiano, e levam à expulsão de Annina e dos colegas judeus da sala de aula.
Este é um livro de leitura compulsiva, com um enredo imaginativo, cheio de peripécias e pequenas surpresas, em que o autor consegue a proeza de nos manter entre o verosímil e o fabuloso, entre o histórico e o burlesco. Uma narrativa rigorosamente documentada, em que a história nunca se torna densa, e surpreende constantemente o leitor, especialmente no fim, quando o leitor é relembrado de que nunca se pode confiar verdadeiramente na voz narrativa.
Nesta história de crescimento, a vida é um palco – como quando Annina se vê verdadeiramente pela primeira vez como a mulher fogosa que deseja ser, num palco frente a uma miríade de espelhos – e o fingimento (assim como o desejo de vingança que deixa Annina a ferver por dentro) pode ser a única estratégia de sobrevivência num mundo ditado por falsos ídolos e pelas máscaras das convenções sociais e dos preconceitos, onde todos mentem e escondem segredos, como é o caso da amiga de Annina que se faz passar por rapaz.
João Pinto Coelho, nascido em Londres em 1967, arquitecto e professor de Artes Visuais, foi finalista do Prémio Leya em 2014 com Perguntem a Sarah Gross, um dos nomeados como Melhor Livro de Ficção Narrativa de 2015 pela Sociedade Portuguesa de Autores.