Um Casamento Americano, de Tayari Jones, chegou às livrarias no início de março, com tradução de Tânia Ganho e o selo da Quetzal. Vencedor do Women’s Prize for Fiction 2019, finalista do International Dublin Literary Award, lido e recomendado por figuras como Barack Obama e Oprah Winfrey, este romance fala-nos dos efeitos de uma condenação arbitrária num jovem casal afro-americano.
No primeiro capítulo, ficamos a conhecer a relação de Roy Othaniel Hamilton e Celestial Gloriana Davenport, recentemente casados. Tinham-se conhecido na faculdade e começaram a namorar após um reencontro em Nova Iorque, anos mais tarde. Roy é um homem afável, regrado, ainda que assumidamente mulherengo, e tem um bom emprego. Celestial é bonita, cheia de caráter e uma artista promissora de uma linha de bonecas. Têm sido felizes no seu primeiro ano de casados, e depois de um festim num restaurante, por ocasião do seu jantar de aniversário de casamento, regressam a casa para a sobremesa, «duas fatias de bolo de casamento que tinham ficado no congelador durante trezentos e sessenta e cinco dias, a ver nos aguentávamos um ano inteiro» (p. 21). Algum tempo depois, numa visita aos pais de Roy «um meteoro espatifou-se» naquela vida quase idílica «de um rio que não era pequenino e doce» (p. 24).
Numa narrativa focada em fortes questões morais, raciais e legais, destaca-se sobretudo a proeza narrativa da autora. O primeiro capítulo, narrado pela perspetiva do marido, destaca-se sobretudo a ironia e o humor de Roy, que nos transmitem a impressão de um homem feliz.
«Também temos de nos desenvencilhar com o amor que nos dão, com todas as complicações que vêm a reboque, chocalhando como latas presas a um automóvel de recém-casados.» (p. 116)
Logo no segundo capítulo (p. 42), é Celestial que de forma menos linear nos dá conta do drama que repentinamente irrompe pelo quarto do casal. Devido a um tremendo equívoco, Roy é preso, acusado de violação, e condenado a 12 anos de prisão. O facto de serem de uma família de «típicos burgueses negros de Atlanta» (p. 15) é irrelevante, bem como a ausência de testemunhas ou provas concludentes.
Ao longo de 40 páginas, até ao final da primeira parte do livro, a narrativa faz-se de forma epistolar, no arco dos cinco anos seguintes em que vivem forçosamente apartados. Irreversivelmente separados, e conforme a vida de Celestial também ganha novo ímpeto, obrigando-a, cada vez mais, a romper com as prisões que a acorrentam ao passado, embora nunca tenha deixado de acreditar na inocência do marido, as cartas trocadas entre eles, numa espécie de diálogo surdo, revelam como os ressentimentos podem ser extrapolados, como até a comunicação mais genuína pode criar equívocos e as palavras ditas impulsivamente numa briga de casal abrem feridas de mágoa irreparável.
«Quem entende de casamento são os divorciados como eu. Esqueça as pessoas felizes. Essas não sabem nada.» (p. 255)
O romance reparte-se por três vozes: Roy, Celestial e Andre, o amigo do casal, que inadvertidamente os uniu. Como afirma o próprio Roy, até numa história que se escreve a dois, «é claro que há mais lados nesta história do que só o meu e o dela» (p. 116). Esta é uma narrativa fortíssima, com episódios emblemáticos, em que se destaca sobretudo a proeza de Tayari Jones na construção das personagens e, sobretudo, na sua voz narrativa, originalmente únicas (há apenas umas páginas em que o humor e ligeireza típicos de Roy parecem contaminar a perspetiva de Andre). É também um romance que explora o que significa ser negro na América e como a pele afeta o nosso juízo na hora de julgar alguém, de condenar, ou até o modo como se ama, como se vive. É curioso, por fim, destacar um tema subliminar às três várias personagens, marcadamente presente e estruturante das relações familiares que estas tecem com os seus progenitores bem como entre si: a relação com um pai muitas vezes ausente.
Tayari Jones, autora multipremiada de quatro romances, nasceu em Atlanta, em 1970. É licenciada pelas universidades do Iowa (Spellman College) e do Arizona (Arizona State University). É professora de escrita criativa na Emory University e membro do Andrew Dickson White «Professor-at-Large» da Cornell University, programa que seleciona intelectuais norte-americanos e de outras nacionalidades que tenham alcançado alta distinção em vários domínios, nomeadamente, na Literatura, para leitorados visitantes, e que se tornam membros vitalícios daquela comunidade académica. Vive em Atlanta.