O Pai Natal não vive no Polo Norte, com texto e ilustrações de Afonso Cruz, é um livro infanto-juvenil, que tem muito pouco da alegria condizente a esta época festiva. Publicado pela Fábula, com posfácio de Joana Bértholo e uma nota final do autor, este pequeno livro pinta em tons sombrios um singular conto de Natal. A disforia deste peculiar livro assenta no (des)acordo entre a imagem e o texto.
Afirma Joana Bértholo, no seu «Posfácio»:
«A palavra “encantamento”, aliás, associo-a logo à obra de Afonso Cruz. Uma das muitas coisas que me atraem nos seus livros é a forma que têm de urdir sombra e luz, levando-nos pela mão pelo que na experiência humana há de inconciliável, intratável ou penoso, sem nos deixar perder de vista a beleza, a poesia e o espanto. Este conto de Natal é um exemplo disso.»
Num texto breve, em letras garrafais, conta-se o que pode ser lido como a simples história do Natal. Uma prosa encantatória e singela que nos fala de crianças, renas e presentes, como é próprio do Natal. Paradoxalmente, a par das frases que narram o conto, surgem ilustrações que ensombram a mensagem de espírito natalício e que explicam o título na negativa… É através desta contraposição que se denuncia, de forma irónica, aquela que continua a ser a realidade mundana do nosso quotidiano, acusando temas que nestes dias não deveriam ser obnubilados pela névoa da efusão festiva, isto é, questões como o consumismo, o capitalismo, o trabalho infantil, a degradação ambiental, etc. Nas ilustrações é flagrante a ausência de cor, de natureza, e até de crianças – as poucas que aparecem ganham contornos bizarros, magérrimas, em farrapos, e descalças. O que ganha vida nestas imagens é a opulência, a indústria fabril, a poluição…
Uma prosa de conto de fadas que pode ser lida, primeiro, como uma história para adormecer, mas que, se for lida à hora de ir deitar, com as ilustrações a dar vida ao texto, é perfeita para despertar a consciência social e afugentar o sono
Como o próprio autor esclarece, no final, este texto integrava o capítulo inicial de Para onde vão os guarda-chuvas, sobre uma criança chamada Isa, e que aparece legendada numa das ilustrações, onde podemos ver os “duendes” do Pai Natal, num contexto de exploração laboral. Esse texto aliás criava desconcerto entre crítica e leitores, pelo que o autor decidiu suprimi-lo, e deu-lhe aqui, em boa hora, vida própria.
Uma prosa de conto de fadas que pode ser lida, primeiro, como uma história para adormecer, mas que, se for lida à hora de ir deitar, com as ilustrações a dar vida ao texto, é perfeita para despertar a consciência social e afugentar o sono. Não se deve, contudo, pensar neste álbum como uma história de terror; devemos antes lembrar-nos que ao despertar a consciência de pequenos e graúdos, ao acordar o leitor para uma realidade que a maioria prefere ignorar, estamos a contribuir para um mundo efectivamente melhor, onde as palavras e as acções condizam com esta época festiva, de amor, solidariedade e generosidade.
Afonso Cruz é escritor e ilustrador, autor de vários romances, não-ficção e ensaio, contos, peças de teatro e álbuns ilustrados. Alguns prémios e distinções: Prémio Literário Maria Rosa Colaço, Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, Prémio da União Europeia para a Literatura, Prémio Autores/SPA (duas vezes, em diferentes categorias), Prémio Fernando Namora, Prémio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil do Brasil (FNLIJ), Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga/Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Álvaro Magalhães e Prémio Nacional de Ilustração. A sua obra está traduzida para mais de 20 línguas.
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