O Outro Nome, de Jon Fosse, autor norueguês que tem vindo a ser publicado pela Cavalo de Ferro, é o livro inaugural do seu projeto romanesco. O Outro Nome, com tradução de Liliete Martins, é o primeiro dos três volumes (inclui a parte I e II) que compõem o romance Septologia, nomeado para o prémio Booker International 2020, e considerada a magnum opus de Jon Fosse, autor com mais de 60 obras nos mais variados géneros. Segundo a crítica, Septologia constitui um dos pontos cimeiros da celebrada carreira do autor, que o confirma como um nome essencial da literatura contemporânea.
Aproxima-se o final do ano. Asle é um velho pintor viúvo e solitário, parado defronte do seu último trabalho. Na tela estão duas simples linhas pintadas a óleo, que se sobrepõem como uma cruz de Santo André. Asle interroga-se se a tela estará pronta, se gosta dela ou se a levará juntamente com as outras treze obras que preparou para a sua próxima exposição em Bjørgvin, no Advento. A partir desse foco, dessa observação exterior, passamos, sem aviso, para longas meditações sobre o seu passado de jovem pintor sem dinheiro, a relação com Ales, a sua falecida mulher, a conversão tardia ao catolicismo, a sua relação com a pintura, reflexões quase metafísicas: “há, sim, uma espécie de luz, uma espécie de escuridão luminosa, uma luz invisível nessas imagens qye fala silenciosamente a partir delas, e que fala verdade, e então, quando chego a esta visão, ou a este modo de ver, já não sou eu que vejo mas sim algo que vê através de mim” (p. 291).
Sentimos assim, em alguns momentos, que a vida, como a arte, é como uma tela que podemos furar e atravessar para chegar ao outro lado. Talvez por isso mesmo, existe um outro Asle, tão real quanto este, também ele pintor, solitário, mas dependente do álcool. Duas histórias de vida que se cruzam e se sobrepõem.
Toda a narrativa é eivada de uma forte carga simbólica e de diversos motivos, a começar pela simbologia dos números, que assiste à própria estrutura da obra.
À medida que progredimos na narrativa, torna-se cada vez menos claro se Asle é um só pintor, ou se se desdobra em dois, pois fala-nos recorrentemente de um outro amigo, o seu Homónimo, a quem sente necessidade de espiar, como que para se certificar de que está bem. Também esse outro é pintor; um alcoólico, como ele em tempos foi. Entretanto há ainda um vizinho, Åsleik, cujo nome é estranhamente próximo do deles.
“e não somos ambos, ele e eu, verdadeiros paradoxos aqui no lugar onde estamos, pois como se conectam a alma e o corpo, digo eu e o Åsleik responde não sei, diz-me tu e ficamos ali os dois sem dizer nada e depois eu digo que a cruz em si mesma é um paradoxo, com aquelas duas linhas que se cruzam” (p. 92)
A juntar a esse desdobramento do protagonista, desfilam ainda vários episódios que, de forma onírica, nos levam a crer tratarem-se de memórias que irrompem sobre o real. Asle refere-se-lhes mesmo como a “reserva de imagens que tenho dentro da cabeça, todas essas imagens que me enchem a cabeça” (p. 301). Essas indefinidas analepses reforçam a sensação de que as personagens parecem mover-se num limbo, entre este mundo e o outro, tal como acontece em Manhã e Noite ou Trilogia: “dou uma olhadela em volta para ver os outros clientes que se encontram ali sentados na Casa de Pasto com as suas cervejas e os seus cigarros como uma frágil defesa contra o mundo, (…) e o mar dentro deles é imenso, na tempestade e na bonança, enquanto ali estão sentados à espera da próxima e última viagem de barco de barco que irá largar do cais, a tal viagem que nunca terá fim, da qual nunca mais regressarão a casa, e não sentem qualquer receio, o que for soará, pois nisso haverá um sentido, sim, Nosso Senhor terá nisso algum desígnio, pensam eles” (p. 135). Há ainda neste livro, quase como que a condizer com o título de sonoridade algo bíblica, uma vivência profundamente religiosa, mas de essência intimista, da parte de Asle, alguém que nos confessa rezar o Pai Nosso todos os dias, pelo menos três vezes ao dia, e que o memorizou em latim…
O estilo hipnótico inconfundível de Jon Fosse é já uma marca característica, que perpassava igualmente nos romances anteriormente publicados entre nós.
Contudo, em O Outro Nome, a prosa de Jon Fosse torna-se ainda mais cumulativa, em parágrafos que se distendem por páginas, por vezes pontuados por falas. As palavras seguem-se, desfilam, acumulam-se, enredam-se e repetem-se, ressoando e ecoando. Lemos assim esta prosa como se fosse uma longa prece que se enreda e nos enleva.
O título Septologia explica-se porque a cada uma das sete partes do livro corresponde um dos sete dias na vida de Asle, um pintor que se aproxima do final de mais um ano de vida, mas também daquele que pode bem ser o último ano da sua vida.