Mrs. March, de Virginia Feito, com tradução de Alda Rodrigues, foi publicado pela Alfaguara.
Narrado na terceira pessoa, de forma desafectada, somos ainda assim arrebatados numa espiral em crescendo pois a nossa perspectiva é a da mente inquieta da protagonista.
George March acaba de publicar um novo romance cujo sucesso é imediato e retumbante. Entre todos os que gravitam em torno do escritor, não deve haver ninguém mais orgulhoso do que Mrs. March, a esposa solícita que o acompanha há cerca de 13 anos.
A narrativa começa numa manhã perfeitamente rotineira, no Upper East Side, bairro de classe alta em Nova Iorque, com mais um dia perfeito na vida perfeita da mulher de aparência irrepreensível, que é Mrs. March, a caminho da sua confeitaria preferida, um “lugarzinho amoroso”, para comprar o seu pão preferido – com azeitonas. A narração avança e retrocede, como se nos distraísse um pouco do mistério, de forma a compor um pouco melhor, gradualmente, a personagem: ficamos a saber por exemplo que fica nervosa sempre que entra em lugares públicos ou quando interage com outras pessoas. O seu nervosismo, não obstante a indumentária impecável, começa a transparecer na forma como ora veste ora despe as luvas que o marido lhe ofereceu, numa cor verde que ela nunca ousaria escolher. Até que o verniz definitivamente estala, quando a gerente da confeitaria, Patricia deixa escapar, como se fosse um elogio, que Mrs. March deve estar orgulhosa por o marido se ter inspirado nela para a personagem do seu novo romance. Mrs. March não leu este romance, ao contrário do que antes acontecia com outros livros do marido, mas sabe aquilo de que trata e é invadida por uma perfeita indignação com a leviana suposição de que a protagonista do livro do marido, uma prostituta feia e estúpida com quem ninguém quer dormir, seja uma personagem inspirada nela.
A partir desse momento, desorientada e chocada, Mrs. March apressa-se a regressar a casa e confrontar a imagem que cuidadosamente criou com a do romance do marido, o que acaba com ela a estraçalhar um exemplar do livro.
Uma leitura vertiginosa, entre suspeitas e inquietações paranóicas, de uma dona de casa entediada com uma imaginação excessivamente fértil, ao ponto de Mrs. March começar a ter visões (a começar pela barata da capa), que arrebata e prende o leitor até conseguir desvendar os segredos obscuros que esta personagem, tão cativante quanto críptica, oculta.
A prosa é escorreita, perfeitamente visual, desvenda mais um pouco da vida da personagem em pontuais analepses, mas simultaneamente revela muito pouco da sua verdadeira natureza. A forma como ela se confronta levemente com o fantasma do primeiro casamento, de achar que viu uma mulher coberta de sangue na janela do prédio em frente, e, principalmente pelo facto de nunca a conhecermos pelo primeiro nome, lembra-nos um enredo ao jeito de Hitchcock – não é por acaso que ela está a ler Rebecca e também não é por acaso que Mrs. March parece temer a sua empregada (a lembrar a relação turbulenta da protagonista do livro de Daphne DuMaurier com Mrs. Danvers).
A narrativa evoca ainda Virginia Woolf, mais concretamente Mrs. Dalloway, uma mulher com uma vida aparentemente perfeita mas cuja angústia existencial a faz ouvir pássaros que cantam em grego.
Virginia Feito nasceu em Madrid, em 1988, e este é o seu romance de estreia escrito em inglês. Cresceu entre Paris e a capital espanhola. Estudou Inglês e Teatro na Queen Mary University, em Londres. Já traduzido em Espanha, França e Itália, foi destacado como um dos melhores livros do ano em vários meios de comunicação, The Times, Oprah Daily, Evening Standard, The Independent, entre outros. Está prevista uma adaptação cinematográfica com Elisabeth Moss.
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