Matarás Um Culpado e Dois Inocentes é o mais recente romance do escritor e jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho, publicado pela Dom Quixote. Ainda que possa ser lido de forma independente, o décimo livro do autor retoma algumas pontas soltas do anterior, As Cinco Mães de Serafim, e encerra interrogações deixadas em aberto.
Cumprem-se 50 anos desde o 25 de Abril. Mas o acontecimento que realmente agitou Gondarém foi ver três caixões a sair da casa, com a morte de três irmãs nesse dia, e o desaparecimento de uma quarta irmã. Serafim tinha então 10 anos.
Gondarém vivia então “em círculo, um pouco cerrada sobre si” (p. 57), como tantas outras terras portuguesas a meio do século XX – o que nos remete para vilarejos do realismo mágico, como a Vilamaninhos de Lídia Jorge, outra obra que, ao falar de uma cobra, aborda indirectamente, em alegoria, um Portugal parado no tempo e o que se viveu no 25 de Abril.
O autor encontra aqui uma voz segura e própria, um registo singular de um narrador que subtilmente se imiscui e deixa o seu comentário discreto
Na boca das mulheres que se benziam rumoreja o boato que “foi de tanta conversa com os mortos que eles as vieram buscar” (p. 59). Diz ainda o povo que a irmã mais velha comunicava com os mortos, a segunda entendia os loucos, a terceira falava com os animais. E a mais nova passava os dias a ajudar e a falar com quem precisasse. Há quem comente que morreram por não aguentar um segredo terrível que a mãe guardava. A magia, que palpita a espaços, é indiciada, sem ser aprofundada ou explicitada.
O autor encontra aqui uma voz segura e própria, um registo singular de um narrador que subtilmente se imiscui e deixa o seu comentário discreto, numa prosa oralizante, despretensiosa e fluída. Há momentos em que a voz narrativa se imiscui, tecendo uma certa crítica social com apontamentos mais mordazes: “Sendo relato de drama, por aqui se vê que somos muito propensos a parar para ver o acidente na estrada.” (p. 294)
Rodrigo Guedes de Carvalho nasceu em 1963, no Porto. Estreou-se na ficção com o romance Daqui a Nada (1992), vencedor do Prémio Jovens Talentos da ONU. Seguiram-se-lhe A Casa Quieta (2005), Mulher em Branco (2006), Canário (2007), O Pianista de Hotel (2017) – Prémio Autores SPA Melhor Livro de Ficção Narrativa 2018 –, Jogos de Raiva (2018), Margarida Espantada (2020), Cuidado com o Cão (2022) e As Cinco Mães de Serafim (2023) – semifinalista do Prémio Oceanos 2024. Elogiado pela crítica, é considerado uma das vozes mais importantes da nova literatura portuguesa. Autor dos argumentos cinematográficos de Coisa Ruim (Filme de Abertura do Fantasporto 2006) e Entre os Dedos (2009), e também da peça de teatro Os Pés no Arame (2002).
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