Filhos da Fábula é o terceiro romance publicado pela Dom Quixote do escritor espanhol Fernando Aramburu, traduzido por Cristina Rodriguez e Artur Guerra (Nota dos Tradutores).
Em 2021 foi publicado O Regresso dos Andorinhões, romance de grande fôlego, ácido e enternecedor, que cruza a vida e a literatura, e que confirmou Aramburu como um dos melhores escritores europeus. Mas o seu maior sucesso foi definitivamente Pátria, portentoso romance desconstruído em capítulos desordenados cronologicamente, o que só acentua a tensão da intriga, traduzido para mais de 30 línguas e adaptado para televisão numa série da HBO, Aramburu regressa às histórias sobre os bascos e a ETA.
Filhos da Fábula é um romance de leitura mais ligeira, divertido, mas nem por isso deixa de tratar de forma irreverente temas sensíveis.
Dois jovens, Asier e Joseba, partem, em 2011, para o sul de França com a intenção de se converterem em militantes da organização terrorista ETA. Esperam instruções numa quinta, acolhidos por um casal francês com quem pouco se entendem – mal se comunicam e pouco se vêem. Entretanto é na quinta que ficam a saber que o grupo anunciou o fim da atividade armada. Os jovens vêem-se assim abandonados à sua sorte, sem dinheiro, sem experiência, nem armas. Aquilo a que se mantêm aferrados é ao seu ideal de libertação da pátria. E, mesmo sem meios, sem sequer delinear um plano prático e exequível, decidem continuar a luta por sua conta, fundando uma organização própria. Claro que entre os dois é natural que um assuma o papel de chefe e ideólogo, enquanto o outro faz as vezes de subalterno. Apesar de chegarem ao final do romance com a sensação de que “no fundo não fizemos nada”, sucedem-se as mais divertidas e ridículas peripécias. Contudo, devido ao contraste estabelecido pelo fundo de idealismo e pela profundidade com que se agarram às crenças que defendem, uma história de sucessivos desenlaces pícaros que se pretendem grandes feitos heroicos transforma esta narrativa numa tragicomédia, uma espécie de drama cómico.
O humor permanente, cáustico, veloz. A narrativa discorre com frases breves, ainda que haja momentos em que o próprio leitor sente o tempo a arrastar-se da mesma forma que estes heróis pícaros se deixam perambular na espera de um grande acontecimento que dê significado às suas vidas – um pouco como os bombistas suicidas que encontram o sentido da vida no seu derradeiro, brevíssimo e muitas vezes inconsequente fim. O virtuosismo da prosa de Fernando Aramburu reside na subtileza com que ele se escuda, isentando-se de qualquer possível influência directa sobre o leitor, deixando-nos entre a piedosa simpatia pelos protagonistas e a sensação acutilante do ridículo do seu fanatismo, que deixa estes dois jovens incapazes de ver a realidade movediça em que se afundam, enquanto deixam as suas vidas escoar-se. Um romance cujas personagens cómicas têm tanto de quixotesco como de Bucha e Estica; a alusão é aliás directa, como na passagem “Isto de hoje está a ser de filme de Bucha e Estica” (p. 111).
Efetivamente divertidas e inteligentes são os comentários irónicos do autor, aqui e ali, que colocam a tónica na importância de, um dia, estes jovens poderem escrever a sua história de forma a saltar “as cenas ridículas”, e selecionando factos, para que “Não venham depois os escritores do lado do inimigo lixar-nos a vida.” (p. 145)
Fernando Aramburu nasceu em San Sebastián, em 1959. É licenciado em Filologia Hispânica pela Universidade de Saragoça, foi membro do Grupo CLOC de Arte y Desarte e reside na Alemanha desde 1985. Considerado um dos narradores mais destacados em língua espanhola, é autor dos romances Fuegos con limón (1996), Los ojos vacíos (2000, Prémio Euskadi), que juntamente com Bami sin sombra (2005) e La gran Marivián (2013) formam a «Trilogía de Antíbula», El trompetista del Utopía (2003), Viaje con Clara por Alemania (2010), Años lentos (2012, VII Prémio Tusquets Editores de Romance e Prémio dos Livreiros de Madrid) e Ávidas pretensiones (Prémio Biblioteca Breve 2014).
Publicou também os livros de contos Los peces de la amargura (2006, XI Prémio Mario Vargas Llosa NH, IV Prémio Dulce Chacón e Prémio Real Academia Espanhola 2008) e El vigilante del fiordo (2011).
Pátria (2016) foi considerado um dos livros mais impressionantes da literatura espanhola contemporânea, tendo-lhe sido atribuídos o Prémio Nacional de Narrativa, o Prémio Nacional da Crítica, o Prémio Euskadi de Literatura, o Prémio Strega Europeu e o Prémio Lampedusa, entre outros.
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