Ludmila Ulitskaya é um dos grandes nomes da literatura russa contemporânea. Regresso à autora, depois de Sonechka, com este Caso Kukótski, publicado pela Cavalo de Ferro, com tradução dos reconhecidos Filipe Guerra e Nina Guerra. Não se entra aqui de ânimo leve, pela época retratada, pelos temas, pela espessura, mas a leitura revela-se rapidamente aprazível. O romance foi vencedor do Russian Booker Prize.
Não é novidade que os russos nos presentearam com alguns dos melhores romances, a começar por Tolstoi, figura omnipresente que aqui é invocada logo no início, mais pela sua religiosidade e mitologia do que pela literatura.

Doutorado em Literatura na UAlg
e Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
Ludmila Ulitskaya mantém viva a tradição do bom romance russo, com uma saga familiar que se estende por mais de cinco décadas de história da Rússia e cruza gerações.
A ação atravessa o século passada, e inicia sensivelmente depois da Segunda Guerra, quando a taxa de mortalidade infantil é gigantesca, logo entre os recém-nascidos, e um elevado número de mulheres, em idade reprodutiva, morre em consequência de abortos ilegais.
Descendente de uma longa e brilhante linhagem de médicos, não é surpresa que Pavel Kukótski se torne um respeitado ginecologista, especialmente interessado no tratamento da infertilidade e na prevenção do aborto espontâneo. Mais surpreendente é o seu dom sobrenatural para diagnosticar as doenças do corpo humano, quando olha para o seu interior (o que nos lembra personagens como Blimunda, ou a trilogia (de que muito gostei) iniciada com O Físico, de Noah Gordon). Chocante também, para alguns, é o facto de Pavel Kukótski procurar defender as mulheres que procuram abortar. Depois da proibição do aborto imposta por Estaline em 1936, Kukótski testemunha os seus efeitos desumanos e luta pela sua legalização, o que coloca em risco a sua carreira profissional, a sua imagem – a certa altura é mais fácil ser visto pelos do seu meio como um reputado bêbado do que como um excêntrico e um idealista -, e periga igualmente a harmonia da vida familiar — com a sua mulher, Elena, e a filha, Tânia, mas também a fiel criada, a temente, limitada e religiosa Vassilissa.

Segundo o Júri do Prémio Formentor 2022, Ulitskaya “escreve e descreve com fina ironia e ternura a complexidade da vida na Rússia (…) e aborda na sua extensa obra (…) a personalidade, os traços e as qualidades da mulher que resiste, contorna e desmente a vulgaridade dos lugares-comuns.”
Leia-se um dos muitos exemplos dessa ironia, eivada de humor: “a reputação de bêbedo era uma espécie de indulgência. No nosso país, nenhum defeito é encarado com maior tolerância do que a bebedeira. Todos bebem: czares, prelados, académicos, até os papagaios amestrados…” (p. 74)
Ludmila Ulitskaya nasceu em 1943 nos Urais, tendo crescido e estudado em Moscovo. Bióloga de formação, trabalhou no Instituto de Genética de Moscovo antes de empreender a sua carreira literária. Aclamadas pela crítica, as suas obras estão traduzidas em mais de quarenta línguas e incluem romance, conto, literatura infantil e teatro. Sonechka, o primeiro livro da autora, foi, à época, um acontecimento literário, coroado com a atribuição do Prémio Médicis Étranger e do Prémio Literário Giuseppe Acerbi. Seguiram-se obras como Medeia e os Seus Filhos, Caso Kukótski ou A Escada de Jacob, que a afirmaram como uma das mais notáveis escritoras da actualidade. Entre as várias distinções que recebeu conta-se a atribuição do Austrian State Prize for European Literature, do Prémio Formentor, do Günter Grass-Preis ou do título de Officier de la Légion d’Honneur.
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