Dias antes haviam chegado as caravelas a Lagos, donde antes haviam partido. E do alto da sua montada, assistiu o Infante ao resultado da operação de Lançarote de Freitas.
Assim descreve Zurara a grande descarga de escravos naquele que viria a ser o primeiro entreposto europeu do comércio negreiro. Não era a primeira vez que ali chegavam cativos africanos, mas nunca em número tão elevado!
A seu pedido, tinha aquele mercador equipado uma frota de seis navios e cerca de trinta homens que partiram no mês de maio para os bancos de Arguim, atual Mauritânia. Em apenas alguns dias, fizeram 235 cativos tendo retornado a Lagos no dia 6 de agosto de 1444 com a sua carga humana.
Aportaram na zona da ribeira, no local onde se ergue o edifício do mercado de escravos, transformado em museu para que a memória não esqueça. Um símbolo de um tempo que assinala o início do período mais negro e dramático dos descobrimentos e do domínio colonial português e europeu em África. Basta ler o cronista oficial do reino.
Na sua Crónica da Guiné, Gomes Eanes de Zurara, não esconde sentimentos e conta apiedado o que os seus olhos viam. É um relato vivo e atento. Carregado de dor e sofrimento. Feito pelo confidente e a pessoa mais próxima do Infante D. Henrique:
“E no outro dia, Lançarote como homem que do feito tinha principal cargo, disse ao Infante: – Senhor! Bem sabe vossa mercê como haveis de haver o quinto destes mouros (…) vêm assaz mal corregidos (maltratados) e doentes; pelo que me parece que será bem que de manhã os mandeis tirar das caravelas, e levar àquele campo que está além da porta da vila, e farão deles cinco partes, segundo o costume, e seja vossa mercê chegardes aí e escolher uma das partes, qual mais vos prouver”.
E no dia seguinte, “que eram oito dias do mês de agosto, muito cedo pela manhã por razão da calma, começaram os mareantes de correger (preparar) seus batéis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado”. Para um campo onde hoje fica o rossio da Trindade. Ali foi feita a primeira partilha de escravos, a sua licitação e venda. De muitas que haviam de suceder por séculos adiante.
“Mas qual seria o coração, por duro que pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas; outras estavam gemendo mui dolorosamente, bradando altamente, como se pedissem acordo ao Padre da natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançados e (es)tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nos quais, posto que as palavras da linguagem aos nossos não pudesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza.
Mas para seu dó ser mais acrescentado, vieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros; onde se convinha de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os irmãos dos outros, (…) somente cada um caía onde a sorte o levava!
Ó poderosa fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando cousas do mundo como te apraz! (…) E vos outros, que trabalhais nesta partilha, esguardae (observai) com piedade tanta miséria, e vede como se apertam uns contra os outros, que apenas os podeis desligar!
Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados! E assim trabalhosamente os acabaram de partir (separar), porque alem do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e comarcas de arredor, somente para ver aquela novidade.
E com estas cousas viam, uns chorando, outros departindo (protestando) faziam tamanho alvoroço, que punham em turvação (perturbação) os governadores daquela partilha.
O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro, que de 46 almas suas aconteceram no seu quinto, muito breve fez delas sua partilha”.
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Esta descrição retrata em pormenor, sem esconder sentimentos, as cenas de leilão e venda de escravos em Lagos. Nesta praça algarvia, funcionou o primeiro entreposto negreiro da Europa que durou até 1512, ano em que o rei D. Manuel o concentrou em Lisboa. Entre 1441 e 1470, terão passado por Lagos mil escravos por ano. Nas décadas seguintes, cerca do dobro no mesmo espaço de 12 meses. No século XVI estima-se que haveria no Algarve à volta de seis mil escravos, correspondendo a um décimo da sua população total.
Uma parte desse lado negro da história viria a ser desenterrada quando em 2009 foram descobertos no Vale da Gafaria, em Lagos, 158 esqueletos de homens, mulheres e crianças identificados como escravos africanos. Trata-se, segundo os especialistas, do mais antigo local de enterramento de escravos negros encontrado em toda a Europa.
O drama humano registado por Zurara, ganhou nos séculos seguintes uma dimensão transcontinental num triângulo comercial que incluía a Europa, África e o continente americano. A partir de 1444 e durante cerca de 180 anos, os portugueses detiveram, quase em exclusivo, o comércio de escravos no Atlântico. Só a partir de 1621, entraram em cena outros protagonistas.
Se “a culpa não é hereditária” – como disse o historiador Vitorino Magalhães Godinho – no edifício onde chegavam as caravelas quatrocentistas carregadas de escravos, ergue-se hoje um memorial onde ecoam as vozes torturadas de um passado, como exemplo, para não mais se repetir no futuro.
O mercado de escravos tem resistido aos séculos para lembrar que “todo o monumento da civilização é, ao mesmo tempo, um monumento de barbárie” (Walter Benjamin).
► Estima-se que o comércio esclavagista transatlântico a partir das rotas da Guiné, Mina, Angola e Moçambique, tenha envolvido entre 12 a 14 milhões de pessoas das quais, pouco menos de metade, com destino ao Brasil
► A proibição da escravatura em todos os territórios sob administração portuguesa foi aprovada a 25 de Fevereiro de 1869, no reinado de D. Luís
► Em 2016, a Walk Free Foundation, calculava que vivessem ainda em todo o mundo, 46 milhões de pessoas, em regime de escravidão
Fontes: “Crónica da Guiné”, Gomes Eanes de Zurara; “Escravos e Traficantes no Império Português”, Arlindo Manuel Caldeira; “A Expansão Quatrocentista Portuguesa”, V. M. Godinho; “Lagos e os Descobrimentos”, Rui Loureiro; outras