É aparentemente uma história pessoal.
Na década de 90 do século XX um pároco pediu-me que ajudasse a estudar a colecção de ex-votos ou “milagres” guardada no interior de uma ermida de peregrinação, por motivo dos 500 anos da edificação do templo. Estava longe de pensar que se iria abrir tão amplo motivo de reflexão sobre os fenómenos de religiosidade popular e de afirmação das identidades colectivas.
Ao definir como metodologia, para além de análise dos aspectos quantitativos e características das centenas de exemplares, foi essencial conhecer a origem social dos ofertantes dos “quadrinhos pintados” e também a geografia do culto de uma Nossa Senhora que tão extraordinários milagres realizava. No final de dois anos constatou-se que o culto exclusivamente rural abrangia um território muito delimitado, pela visita e observação de outros santuários da região do sul de Portugal, saltaram da “arca patrimonial” mais de setenta cultos idênticos, cada um com a sua Virgem protectora e milagreira.
A religiosidade popular é um manancial de informações sobre as identidades, de afirmação dos lugares especiais habitados por forças sobrenaturais capazes de operar curas e salvamentos, sítios ermos e periféricos carregados de mistérios, onde quase sempre existe uma capela de peregrinação, isolada mas não muito distante da povoação, cuja construção é também rodeada de algum acontecimento extraordinário.
Cada terra foi abençoada e distinguida por um gesto divino, por isso os seus filhos partilham também de características e protecções especiais. É a valorização do local.
Quando no século XIX cresceram os centros urbanos e se constituíram as ciências socais, a monografia da terra surgiu como um “atestado” contra o anonimato e a escassa visibilidade das localidades, por outro lado de valorização dos recursos naturais e da história local.
O Algarve teve estudiosos de primeira grandeza, duas descrições importantes separadas por três séculos são as “Corografia do Reino do Algarve”, de Frei João de São José, editada em 1577, e a de João Batista da Silva Lopes em 1841. A grande transformação ocorreu ainda no século XIX pelo uso de metodologias científicas como o trabalho de campo, pela análise comparativa de dados, a reflexão multidisciplinar que trouxe novos horizontes e aprofundados conhecimentos.
Ataíde de Oliveira (1842-1915), natural de Algoz, deixou-nos dezenas de obras que cobrem temáticas que vão da tradição das mouras encantadas a observações monográficas sobre muitas localidades algarvias como Loulé, Paderne, Estômbar, Olhão, Luz de Tavira, Porches, Vila Real de Santo António…
No século XX, Leite de Vasconcellos (1858-1941) emergiu como figura pioneira da etnografia científica portuguesa, como Orlando Ribeiro o foi no âmbito da Geografia Humana. Manuel Viegas Guerreiro (1912 – 1997), algarvio natural de Querença, teve também um papel muito importante na afirmação da Etnologia Portuguesa, na reabilitação da obra de Leite de Vasconcellos, desenvolveu trabalhos numa perspectiva universalista sem nunca se afastar da região e do local.
Este é um tema de primordial importância no desenho das políticas públicas para a cultura que, no caso português, pela presença da língua e patrimónios por todo o mundo não podem ser diluídas nos macro programas concebidos e financiados pela União Europeia, particularmente voltados para as indústrias culturais, onde impera o digital-produto, consumismos e públicos.
Vivemos tempos em que a herança cultural tende a ser pouco conhecida e valorizada, no frenesim da “inovação”, da “criatividade” e da “criação de novos públicos” consumidores, o património e a cultura nos discursos habituais são pouco mais que mercadoria cuja função será atrair milhares de visitantes, promovendo as vendas da “fileira”, alojamentos, restauração, imobiliário, modelos homologados e padronizados dos não-lugares globalizados.
As civilizações mediterrânicas que nos deram origem, legaram ricos e vastos patrimónios que permitem a Portugal dispor de singularidades, uma língua, monumentos e artes, centros históricos, diversidade paisagística e de habitação, hortas e pomares, cozinha e variedades culinárias, festividades, mercados, convívio comunitário e partilha, em suma qualidade de vida.
A inclusão das pessoas, o conhecimento e respeito pelas culturas, a valorização das regiões e do local são condições essenciais de uma verdadeira democratização, de equilíbrio social e qualidade do desenvolvimento humano.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico