Lembro-me do meu primeiro dia de aula, há cinco anos, no segundo curso de fotografia profissional que resolvi tirar. Desta vez, aqui em terras lusitanas. Meu professor, Pedro Palmela, perguntou-nos: “O que é fotografia para vocês?”. A presumível pergunta obteve respostas similares, inclusive a minha. Ouvia-se desde “É desenhar com a luz” a “É contar uma história”, ou ainda “É eternizar um momento”. Não havia respostas erradas ali. Entretanto, não era esse o objetivo do exercício. O professor então voltou a questionar: “O que é fotografia para vocês?”. Fez-se um silêncio ensurdecedor. Desde então, essa inquietante indagação persegue-me. Tira-me da inércia que uma vez ou outra instala-se na mente e obriga-me a reavaliar o que eu penso, sinto, produzo e, especialmente, busco com a fotografia.
Não é novidade que o avanço da tecnologia permitiu que a técnica de criação de imagem por meio de exposição luminosase popularizasse. O nosso próprio telemóvel permite-nos registar tudo o que quisermos, até os astros (Quem nunca tirou uma foto da lua cheia mesmo sabendo que não sairia nada de jeito que atire a primeira pedra!). Com um pouco mais ou um pouco menos de qualidade a depender do modelo, temos em mãos a ferramenta necessária para garantir que a vovóacompanhe o crescimento do neto do outro lado do Atlântico, para colocar uma foto apresentável no nosso CV e até mesmo para digitalizar e enviar documentos.
A arte como expressão da humanidade, em tempos tenebrosos e até depressivos como este, é invocada a cumprir o seu papel. A fotografia é uma manifestação cultural e artística, produto da criatividade do homem na sociedade. Isto posto, quem foi que ditou que aquela foto desfocada da nossa infância, tirada pela nossa mãe, ao colo do nosso falecido avô, com a mancha de um dedo anelar no canto superior esquerdo não é arte, se sempre nos emociona? O que diferencia de facto esta imagem das minhas enquanto profissional?
Não é que os amantes da fotografia não saibam apreciar o despretensioso e amador retrato descrito anteriormente, mas eles seguramente saberiam potencializar com as suas técnicas todo o sentimento que o momento transbordava. O objetivo não é enaltecer, tampouco desprestigiar o trabalho do fotógrafo profissional, mas legitimar e reconhecer a produção individual e criativa de cada um, num contexto que exige esforços de todos para mantermo-nos como comunidade e como indivíduos sãos e saudáveis. A arte sempre ajudou a humanidade a enfrentar ditaduras, pestes, catástrofes naturais, a vencer seus próprios demónios… Não é uma competição entre profissional e amador, entre DSRL e telemóvel.
Por isso, volto repetidamente à pergunta do meu professor e questiono o meu próprio fazer artístico, a sua necessidade e contribuição. Nesse mergulho em mim mesma, ficou ainda mais claro que a imagem que entrego é tão somente o resultado da minha experiência. A fotografia não é só o meu trabalho, a minha fonte de renda. Ela é, acima de tudo, a estratégia que encontrei para colocar-me no presente, para viver o aqui e o agora. Não há passado, não há futuro. Eu vejo, eu sinto, eu penso, eu clico, eu VIVO! Sorrio com o sorriso de um bebé ao colo de sua mãe, emociono-me com a bailarina interpretando seu papel, choro com os votos sinceros e apaixonados de um casal no altar, enfureço-me com as injustiças sociais e regozijo-me com o renascimento de mulheres empoderadas em trabalho de parto. O conhecimento técnico do meu equipamento permite-me manuseá-lo como se respirasse: espontaneamente. A câmera faz parte do meu corpo e ela consegue captar todas as escolhas que faço com base na minha bagagem de vida, cultural e artística. Posso dizer, com toda a certeza, que a fotografia é a minha terapia mindfulness. Não há espaço para julgamento, só para estar consciente sobre tudo o que passa diante dos meus olhos, ou melhor, das minhas lentes.
Só que para capturar a imagem que eu quero, aquela que estou vendo física, mental e emocionalmente, eu não posso contar com a sorte. Eu tenho que dominar a técnica fotográfica. Contudo, dominá-la, assim como à mindfulness, requer muitos anos de estudo e prática constante. É tão paradoxal quanto verdadeira a necessidade de aprofundar-se nos processos e nas ferramentas de criação, de controlar o equipamento e as técnicas de enquadramento, composição e iluminação, de saber como e porque fazer certas escolhas, para que alcancemos essa naturalização e para que nossa imagem atinja o que esperamos dela esteticamente. Estudar facilita a confeção de tal modo que podemos dar-nos ao luxo de fazer ao mesmo tempo o processamento técnico mentalmente e desfrutar do momento. Tais processos culminam na comprovação revelada em imagem impressa de que todo o esforço valeu a pena, permitem que eu experiencie a fotografia e que ela seja-me tão espontânea quanto existir.
Como professora no curso de fotografia para jovens na ALFA, recebo muitos deles que nasceram para essa profissão no exercício dela no seio familiar, registando a sua própria família, tal como eu. A chamada geração Zjá nasceu com uma câmera digital na mão e o acesso a canais de informação e formação ao alcance de um clique. Ainda assim, a experiência de se obter o conhecimento através do diálogo, da troca com um intermediador, é insubstituível, na medida em que a comunicação é o veículo e o alicerce da construção da própria sociedade.
Agora, temos sempre muito mais a aprender do que a ensinar. O meu papel como formadora é dar as ferramentas necessárias para a sua aprendizagem, para promoção da sua veia e seu olhar artísticos, para domínio e automação dos processos, para que saibam criticar a si e a sua obra e para que tirem o máximo proveito da tecnologia que disponibilizam. Sem jamais julgar, podar ou impor a minha visão. E compete-me levar em conta a sua verdade, como posso ajudá-los a atingir o seu próprio mindfulness, transbordar autenticidade e viver a fotografia.
Depois de tanto tempo distante dos meus alunos, já não vejo a hora de recomeçar as aulas e as reflexões sobre onde está a arte, sobre como ela se faz, como a sentimos, como ela nos salva e, sobretudo, plantar-lhes aquela coceirinha no cérebro com o tradicional e socrático: “O que é fotografia para vocês?”