Atravessamos, neste momento, o décimo quarto estado de emergência decretado desde o início da pandemia. Contamos assim com 210 dias de confinamento, que correspondem a 7 meses de restrições, concretizadas na suspensão parcial dos nossos direitos, liberdades e garantias como cidadãos. Quer isto dizer que já há mais de meio ano que vemos a nossa, já de si coartada liberdade, muito reduzida. Entre todas as liberdade interditas há uma verdadeiramente acutilante: a proibição da actividade profissional de certos sectores.Aqui no Algarve, por exemplo, alguns outrora trabalhadores nas áreas do turismo e da restauração vivem situações desesperadas. Nuno Alves, responsável pelo Banco Alimentar do Algarve, em declarações ao POSTAL em Fevereiro passado, distinguiu a pobreza estrutural que estima ser da ordem dos 18 a 20 por cento, das pessoas “cuja situação de pandemia levou à perda parcial ou total dos rendimentos, provocando um crescimento global da operação de assistência às famílias necessitadas da ordem dos 74,2 por cento”.
A aquisição da imunidade de grupo parece ser a via de esperança para o retorno a alguma normalidade, portanto, a vacinação é urgente! Contudo, o processo avança muito lentamente. E esta lentidão não tem que ver com a nossa capacidade de resposta mas sim com a escassez de vacinas. É de conhecimento generalizado o atraso no fornecimento das quantidades contratadas, devido à incapacidade de produção. Pergunto-me, pois, como é possível a manutenção das patentes da vacinas contra a covid-19 quando está em causa a sobrevivência de tantos seres humanos? Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da OMS, escreveu um artigo de opinião no jornal britânico The Guardian (01/03/2021) onde aponta várias alternativas: “Quer se trate da partilha de doses, transferência de tecnologia ou licenciamento voluntário, como a própria iniciativa Covid-19 Technology Access Pool da OMS incentiva, ou renúncia aos direitos de propriedade intelectual, precisamos fazer todos os esforços possíveis.”
De facto, existe em vários países, e Portugal é um deles, capacidade científica e técnica para produção de vacinas. Se a tecnologia fosse partilhada, a vacina poderia estar a ser produzida em todos os quadrantes do globo e teríamos uma imunidade mundial em tempo record! A manutenção das patentes garante o monopólio e, por conseguinte, o lucro das grandes farmacêuticas envolvidas na produção da vacina contra a covid-19. Obvia-se o facto de ter existido muito investimento público para o desenvolvimento científico e testagem, portanto, os cidadãos já pagaram antecipadamente muitos destes custos.
O especialista em patentes, Vítor Palmela Fidalgo, em declarações à Rádio Renascença (23/03/2020) esclareceu que no caso da vacinas e trata de propriedade industrial e defende que “o Estado português tem meios que permitem fazer face a esta circunstância, através das chamadas licenças obrigatórias ou compulsórias”, pois o Código de Propriedade Industrial refere, expressamente, a possibilidade de atribuir licenças obrigatórias por razões de saúde pública. Estando na presidência do conselho da União Europeia, será que o Governo português não poderia interceder neste sentido?
Por seu lado, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em declarações à RTP (29/03/2021) criticou o armazenamento excessivo de vacinas por parte dos países ricos, defendendo que estas devem ser consideradas bem público mundial. Aliás, advertiu que se não formos rápidos a imunizar a população mundial podemos correr graves riscos. É muito possível que se o vírus não for erradicado globalmente se desenvolvam novas mutações resistentes às actuais vacinas, que voltam a colocar os países presumivelmente imunizados em situação vulnerável. Uma vez mais, daqui se deduz que a conduta inteligente e eficiente seria partilhar o conhecimento técnico que permitisse produzir vacinas na maior quantidade e rapidez possível.
O investigador J. Wolff, num artigo intitulado, “Global Justice and Health: The Basis of the Global Health Duty,” publicado em 2012 expõe 3 tipos de razões para o entendimento da saúde pública como transcendendo os estados-nação: interesse próprio; considerações humanitárias; e justiça, direitos e deveres.
O exemplo paradigmático do interesse próprio nacional é a motivação de cada país para prevenir e conter doenças infecciosas. É do interesse das nações mais ricas fornecer apoio financeiro e técnico aos países mais pobres para aumentar sua capacidade de vigilância e resposta rápida e fornecer assistência de emergência quando surgem surtos. Prevenir e conter doenças infecciosas à medida que surgem é do interesse de todos. É também do interesse de todas as nações a partilha global de dados de vigilância e de amostras biológicas por meio de mecanismos mantidos pela OMS. Quase 200 países são signatários do Regulamento Sanitário Internacional, que, entre outras coisas, os obriga a fazê-lo. No entanto, é aqui que podem surgir choques sérios entre o interesse próprio e a justiça global. Bio-amostras partilhadas são usadas para desenvolver vacinas, meios de diagnóstico e tratamentos que, dependendo do contexto, podem ser disponibilizados primeiro ou apenas acessíveis em países de rendimento mais alto, onde essas contra-medidas provavelmente serão financiadas e desenvolvidas.
Com respeito às considerações humanitárias e justiça global cabe perguntar: será correcto ficar parado e permitir que outros sofram quando temos os recursos para ajudar? Temos ou não o dever humanitário de ajudar aqueles que se encontram em circunstâncias desesperadas? Esses deveres transcendem as fronteiras nacionais. Os serviços, materiais e pessoal de saúde pública estão frequentemente entre as respostas mais importantes em crises humanitárias, não apenas em surtos e epidemias, mas também em desastres naturais, guerras e conflitos violentos, populações deslocadas e migrações em massa, fomes e secas. Organizações humanitárias de saúde e profissionais de saúde são regularmente confrontados com desafios éticos que incluem, por exemplo, tensões entre princípios humanitários de imparcialidade e neutralidade e compromissos éticos com a distribuição justa de recursos de saúde limitados, tal como apresentam os investigadores Broussard, et al., no artigo “Challenges to ethical obligations and humanitarian principles in conflict settings: a systematic review,” publicado em 2019.
No que concerne à Saúde Pública, Justiça Global, Direitos e Deveres são sobejamente conhecidas as diferenças gritantes na saúde entre as populações que vivem em países ricos e as populações que vivem em países de baixoe médio rendimento. Será justo que os países ricos produzam e armazenem apenas a quantidade de vacinas necessária para proteger as suas próprias populações, quando os países pobres não têm uma capacidade comparável? Enquanto os surtos crescem em países pobres e as mortes aumentam, os países ricos podem continuar a reservar o seu suprimento de vacinas para sua própria população?
Os regimes de propriedade intelectual e os acordos comerciais internacionais fornecem uma proteção tremenda para as empresas farmacêuticas em países ricos, com o resultado de que muitos medicamentos e produtos biológicos custam muito além do que os países pobres podem pagar. Que legitimidade tem isto?
Por outro lado, somente os países ricos têm recursos financeiros e humanos para fazer investimentos consideráveis em investigação biomédica. Esses países têm ou não a obrigação moral de alocar recursos para resolver os principais problemas de saúde dos mais desfavorecidos?
Sabemos que a melhoria da saúde dos pobres do mundo está indelevelmente ligada a melhorias económicas, sociais, educacionais e ambientais, e as reivindicações de justiça relacionadas à saúde não são facilmente separáveis das reivindicações de justiça que surgem nesses outros contextos. Se considerarmos a saúde como um direito fundamental, conforme codificado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e encararmos as desigualdades entre as pessoas que vivem em nações ricas e as que vivem no resto do mundo, então, quer entendida comoquestão de justiça, quer como preocupação humanitária, a ética da saúde pública não nos permite baixar os braços!
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico