Caminhando ao longo das ruas de Tavira, deparei-me subitamente com a encantadora Ermida de Nossa Senhora do Livramento (também conhecida como Ermida de São Lázaro), erguida nos inícios do século XVI, detive-me contemplando a fachada, onde duas pequenas janelas, abertas para arejar o espaço, permitiam visualizar o interior da ermida. Por vezes, com alguma sorte, é possível entrar. Quando tal acontece, sento-me para desfrutar da beleza do seu rico interior, numa atmosfera que convida à meditação e à oração.
No final, são sempre as pinturas ex-voto a atrair a minha atenção. São representações vívidas e impressionantes de embarcações lutando com as ondas de mares ferozes e enfurecidos. Enquanto uns se afundam, outros parecem voar sobre as ondas de um mar tempestuoso, chicoteados como galhos pelos ventos raivosos. São cenas aterradoras! Imagino desastres marítimos evitados devido à intervenção de Nossa Senhora. Estas pinturas sobre painéis de madeira são um evidente testemunho da dura vida dos marinheiros e pescadores e atestam a estreita ligação que sempre existiu entre os habitantes de Tavira e o mar.
Genericamente, os ex-votos são ofertas votivas a um santo ou a uma divindade, que tanto podem acompanhar um pedido almejando um desenlace feliz, como constituir já o pagamento da promessa relacionada com tal pedido. Podem ser pinturas, esculturas ou inscrições que personificam uma intervenção miraculosa ou o recebimento de uma grande graça e, geralmente, são colocados em igrejas, capelas, ermidas ou cemitérios. A designação ex-votoderiva da expressão latina “ex voto suscepto”, que significa “pela promessa realizada” ou “em resultado da promessa realizada”. A origem cristã do ex-votoremonta ao século IV, tendo-se generalizado na orla norte do Mediterrâneo a partir dos séculos XV e XVI.
Eis alguns exemplos de ofertas votivas existentes na ermida de Nossa Senhora do Livramento e a sua relativa descrição:
Enquanto me impressionam estas vívidas expressões de ex-votos, representando os milagres com que Nossa Senhora do Livramento expressou a sua proteção aos marinheiros e pescadores de Tavira, a minha mente viaja até à abadia de Santa Maria do Monte que, situada na colina de Cesena, afirma-se como presença protetora sobre a cidade. Anexo à abadia encontra-se o convento de monges beneditinos, preciosos e incansáveis guardiões de todo o imponente complexo. Na abadia existe uma coleção de cerca de setecentas oferendas votivas, um património de valor inestimável constituído por painéis de madeira pintados, sendo os mais antigos datados do início do séc. XV. Importa referir que este espólio continua a crescer nos dias de hoje.
Estes ex-votosde Cesena são igualmente uma forma de homenagem e agradecimento à Virgem Maria (Madonna), cuja intervenção providencial salva os fiéis de variadíssimas provações, destacando-se na amostra as doenças, os acidentes, os incêndios, os terramotos, os naufrágios e os atos criminosos a que a vida humana está sujeita. Os painéis de ex-votossão uma expressão da arte popular e fixam efectivamente o momento culminante, ou seja, o momento em que a tragédia está prestes a acontecer e, graças à intervenção de Nossa Senhora, o perigo cessa. São representações de momentos da vida quotidiana que permitem imaginar e revelar alguns aspetos da personalidade da pessoa que fez a oferenda, bem como os costumes daqueles tempos idos, sobrevivendo aos séculos como um exemplo para a comunidade. Estas obras são uma preciosa fonte de informação para estudos de especialistas de várias disciplinas, tais como a História, a Arte, a Medicina, a Paleopatologia, a Sociologia ou a Psicologia.
Seguem-se alguns exemplos de ofertas votivas pertencentes ao espólio da abadia de Santa Maria do Monte em Cesena, acompanhadas pelas descrições e comentários que nos foram enviados por especialistas daquela cidade.
A cena está disposta em dois planos. No topo verificamos o ataque a um jovem que está de pé, vestindo um casaco avermelhado, chapéu preto, e com as mãos atadas. Atrás dele, um homem fere-o nas costas com uma adaga de grandes dimensões. Diante do homem ferido, outro homem olha para o céu e levanta as suas mãos fechadas em sinal de terror e de pedido de graça. A legenda colocada a seus pés, diz-nos: “Eu sou o pandeirista do Reino, ferido de um golpe”. Segundo crónicas da época, este era um pandeirista (percussionista) ao serviço de Galeotto Manfredi, senhor da Faenza.
Em baixo, o mesmo homem ferido está deitado sobre o seu lado esquerdo numa grande cama do século XV. Sobre si pende o bordo inferior de um longo pergaminho desenrolado pelo Menino Jesus nos braços da Madonna del Monte, que lhe concede a cura: “fiz o voto a Santa Maria del Monte e fui libertado”.
A pintura mostra um devoto ajoelhado, rezando a Santa Maria e a São Sebastião. Segura nas mãos um elegante boné preto, sinal de súplica e de pedido de graça. A Madonnausa um manto vermelho e um longo véu azul celeste. Tem sobre o colo o Menino Jesus, que usa jóias de coral nos pulsos e pescoço. Este foca o devoto e abençoa-o com a sua mão direita, em sinal de aceitação do seu pedido. A presença de S. Sebastião, santo protetor das doenças contagiosas, sugere que o jovem sofria de uma doença infecciosa. O pintor recorre a modelos da escola Ferrarese, da região da Romanha, muito difundidos naquela época.
No centro da cena está representada Santa Maria, com um vestido vermelho e véu azul, segurando o Menino Jesus, nu, nos seus braços, sentado numa elegante almofada. Deles irradiam os raios avermelhados, que simbolizam o poder divino. Em baixo, mesmo no meio, está uma criança prestes a cair ao chão, vestida com uma saia, meias cor-de-rosa e sapatos. Está a ser mordido por três porcos selvagens, dois completamente pretos e um preto com uma faixa branca. Atrás dele está um leitão rosado que a criança tinha abordado, provocando a reação defensiva da progenitora e dos outros dois porcos. Ao seu lado estão os seus pais, ajoelhados e a rezar, vestindo roupas de cerimónia. A mãe está à esquerda, com a cabeça coberta por um véu branco enrolado ao pescoço, e o pai está à direita, segurando o seu grande chapéu vermelho, típico dessa época. A cena parece estar suspensa e Nossa Senhora olha e aponta para o pai para testemunhar a aceitação da graça solicitada.
São três os intercessores celestes invocados neste caso: a Bênção de Jesus e de Santa Maria, que estão por cima da cama onde a devota está deitada, e Santa Maria do Egipto, que está de pé no chão, perto da cama. Esta santa, com uma auréola dourada, está nua mas coberta até aos pés por cabelos loiros, e a sua proximidade com a mulher doente indica a sua devoção específica. Dado que Santa Maria do Egipto tinha sido prostituta na sua juventude e era, portanto, considerada uma das protetoras de quem exerce esta atividade, é provável que a mulher retratada na cama seja também uma “mulher da vida”. A mulher doente está deitada numa vistosa cama de dupla cabeceira e veste uma camisa branca com bordados nos punhos e ombros. Um cobertor vermelho cobre-a, enquanto ela regurgita sangue, devido a uma grave tuberculose pulmonar.
No centro da cena está pintado um homem de pé, de seu nome Giovanni, usando um casaco preto e colete vermelho. Da sua boca saem sete demónios com olhos avermelhados, de diferentes tamanhos, com garras, chifres e caudas. À sua frente, ajoelhado e a rezar, está o seu irmão, que segura nas mãos o boné. A sua mãe, à direita da imagem, encontra-se igualmente ajoelhada e a rezar, contemplando os céus. Diante dos três está a basílica de Loreto, com as suas duas torres sineiras e, entre elas, a imagem idílica da Madonna del Montede Cesena. A longa legenda pintada na parede da basílica, elucida-nos: “Que se saiba que eu, Zuane Milanese, estando desanimado e tendo sido durante um ano exorcizado por um padre / com grande fadiga me libertou Maria. / A minha mãe e o meu irmão mandaram-me caminhar até Santa Maria de Loreto e Santa Maria del Monte de Cesena / para que eu, durante um ano, fosse manifestando este milagre e para levar um cálice de prata a cada uma das referidas Madonnas e dizer missas em Loreto para aqueles que sofrem.”
Trata-se, portanto, do caso de Giovanni de Milão, curado da possessão diabólica que o tinha afligido, e que fez uma peregrinação de um ano a Loreto e à Nossa Senhora do Monte, acompanhado pela sua mãe e irmão, levando um painel votivo e um cálice de prata a cada santuário como forma de agradecimento.
O protagonista do quadro é Cristofano di Piero del Tose, retratado com outras seis pessoas ajoelhadas e a rezar dentro de um barco de um só mastro e vela. Cristofano está à proa da embarcação, veste uma longa camisa branca de mangas compridas e dirige-se diretamente à Madonna del Monte, que se encontra à sua frente. Esta veste um grande manto azul com lapelas verdes e uma túnica branca. Segura o Menino Jesus nos seus braços, que estende os seus braços em direção à tripulação em sinal de aceitação do pedido de graça. A longa e pouco legível inscrição na zona inferior do quadro revela que o barco é um pielego, uma embarcação típica da zona norte do mar Adriático, que correu perigo de naufrágio devido a ventos fortes de sudoeste que o fizeram afastar-se da costa e forçou os marinheiros a atirar a “spera da poppa“, ou seja, uma âncora extra para o reter.
Do lado esquerdo da cena representada neste painel votivo surge a Madonna, vestida de vermelho com um manto azul, segurando nos braços Jesus. A epifania de ambos é reforçada por uma nuvem esbranquiçada que os rodeia e pelo fundo dourado atrás deles. Estão a olhar para uma criança que tropeçou no degrau da lareira e está a cair sobre as chamas. Ao lado da criança estão os seus pais que, ajoelhados sobre uma almofada vermelha, rezam. De destacar na pintura os acabamentos, os detalhes e o realismo que o autor conseguiu captar no momento exato do acidente.
A tradição dos ex-votos, como ficou patente nestas linhas, são um elo de ligação, não só de Tavira a Cesena, como de todos os países católicos europeus. Em Portugal (assim como em Itália) são várias as cidades de norte a sul que preservam coleções de ofertas votivas. Todas elas, grandes ou pequenas, constituem um tesouro histórico, artístico e etnográfico, um testemunho eficaz da vida e dos momentos dramáticos vividos por quem os doou. Por serem documentos com valor interdisciplinar tão vasto, por serem autênticos catalisadores de emoções, merecem ser bem preservados e divulgados por todos os povos que valorizam o seu passado, tornando-os acessíveis à população.
Bibliografia:
► AAVV (2008), Tavira, Patrimónios do Mar– catálogo da exposição no Museu Municipal de Tavira – Palácio da Galeria [de 28-10-2008 a 27-9-2009]. Tavira.
► CERASOLI, Giancarlo (2020), La raccolta di tavolette votive dipinte dell’Abazia di Santa Maria del Monte di Cesena.Artigo.
► NOVELLI, Leandro e MASSACCESI, Mario (1961): Ex voto del Santuario della Madonna del Monte di Cesena, Soc. Tip. Forlivese, Forlì.
► FARANDA, Franco (1997), Fides tua te salvum fecit. I dipinti Votivi nel Santuario di Santa Maria del Monte a Cesena, Artioli, Modena.
*Agradecimento à Câmara Municipal de Tavira pela partilha de alguns documentos importantes para a elaboração deste artigo.
[Tradução de Nuno M. Viegas]
Do mesmo autor:
► Biblioteca de Malatesta Novello: Proteção e conservação dos códices
► Biblioteca de Malatesta Novello: O labor dos copistas e iluminadores