Vivemos num tempo de contrastes profundos, onde as realizações humanas são inegáveis, mas as falhas estruturais do sistema global continuam a trazer sofrimento a milhões. O discurso deste domingo de Xanana Gusmão na “Cimeira do Futuro”, nas Nações Unidas, é um retrato fiel dessa realidade, onde o líder timorense questiona a lógica de um mundo que parece mais inclinado a alimentar guerras do que a alimentar crianças.
Olhando para as últimas décadas, vemos uma extraordinária evolução tecnológica, um aumento da conetividade global, e mesmo avanços na saúde e educação. No entanto, esses progressos coexistem com uma crescente desigualdade e um impacto ambiental devastador. Criámos um mundo onde, apesar de tantas inovações, milhões de pessoas ainda vivem na pobreza extrema, sofrem com a insegurança alimentar e enfrentam os horrores das guerras, muitas vezes provocadas por disputas de poder ou por interesses económicos.
Estes últimos anos serão recordados como uma época sombria, onde as guerras eram alimentadas, enquanto milhões de crianças definhavam na fome. E a pergunta é: até quando?
Xanana Gusmão capturou a essência desta crise moral global. Ele expôs a contradição de um mundo capaz de financiar conflitos militares com verbas astronómicas, mas incapaz de garantir o básico para as suas populações mais vulneráveis. Este é o mundo que nós, como humanidade, construímos: um mundo onde o lucro e o poder muitas vezes prevalecem sobre a dignidade humana e a justiça social.
Essa realidade não é exclusiva das nações mais ricas, nem dos países em desenvolvimento. É uma crise global. No Algarve, por exemplo, assistimos a um crescimento económico impulsionado pelo turismo, mas as questões de desigualdade social, falta de acessibilidade a serviços de saúde adequados, e desafios ambientais, como a seca e a “roleta russa” dos incêndios florestais, continuam a impactar a vida de muitos. O Algarve, assim como muitas outras regiões, não está imune a essa crise de prioridades.
Xanana também criticou a lentidão da comunidade internacional em implementar soluções eficazes para problemas globais, como as mudanças climáticas, a degradação ambiental e as crises humanitárias. A sua defesa por uma reforma estrutural do Conselho de Segurança da ONU é, sem dúvida, pertinente. Esse órgão, criado no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, tornou-se obsoleto, incapaz de responder de forma representativa às realidades geopolíticas atuais. Na verdade, o Conselho de Segurança continua a refletir um equilíbrio de poder que já não existe.
A sua defesa de uma maior representação geopolítica, cultural e económica no Conselho de Segurança é um apelo necessário à equidade global. Países como o Brasil, a Índia e a África do Sul têm insistido na necessidade de inclusão permanente, mas a resistência das nações mais poderosas continua a manter o status quo. As nações africanas, em particular, merecem um papel mais destacado, pois são frequentemente as mais atingidas por crises que não geraram.
Olhando para o futuro, devemos perguntar-nos: qual é o legado que estamos a deixar para as gerações futuras? O “Pacto para o Futuro”, o “Pacto Digital Global” e a “Declaração sobre as Gerações Futuras”, adotados durante a cimeira, são um passo na direção certa. Mas serão suficientes? Esses compromissos devem ser mais do que meros acordos no papel. Precisam ser traduzidos em ações concretas e urgentes que verdadeiramente beneficiem os mais vulneráveis.
Se queremos um mundo onde crianças não passem fome enquanto guerras são alimentadas, então precisamos repensar as nossas prioridades globais. O Algarve, uma região onde as caravelas partiram para ligar o mundo e que já enfrentou as mais variadas crises, deve servir como um exemplo de resiliência e de compromisso com a sustentabilidade e o bem-estar social. Devemos todos, em cada canto do mundo e onde há um algarvio, tomar responsabilidade e agir. O futuro do planeta e da humanidade depende das escolhas que fazemos hoje.
Este é o mundo que nós criámos. Mas ainda temos o poder de o mudar.
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