“Sinto-me superior à maior parte dos homens que tenho encontrado. Não pelo nascimento, porque nunca existiu ninguém atrás do meu avô. Não pelo dinheiro, porque o não tenho. Não pela educação, porque é escassa. E não pela beleza, é certo, nem pela força muscular. Então porquê? Por mim próprio. Quando me desafiam, sinto-me superior, naturalmente superior à maior parte dos homens. Mas apenas quando me desafiam”. Ficou conhecido na história da literatura mundial como D. H. Lawrence e levou a vida pessoal e artística a provocar e a conflituar: casou com uma alemã em plena I Guerra Mundial, foi expulso da Cornualha por suspeita de espionagem, nunca iludiu na sua literatura as liberdades sexuais e viu o seu romance A Amante de Lady Chatterley proibido, esteve rigorosamente proibido no Reino Unido até 1960.
“A Maçã de Cézanne… E eu”, por David Herbert Lawrence, com apresentação de Aníbal Fernandes, Sistema Solar, 2016, é mais do que um livro biográfico do genial escritor inglês que viajou por meio mundo para tentar curar a sua tuberculose e que vivia fascinado pela arte: “Durante toda a sua vida tinha desenhado, copiando mestres da pintura, muito raramente chegado ao pincel da aguarela ou das tintas a óleo, teve de esperar muitos anos para ter a coragem de pintar. E depois pintar tornou-se numa orgia”. Sobre esta arte pictórica dela falou como um homem de literatura que sempre foi: “Uma pintura vive com a vida que lá pomos. Se não pusermos lá nenhuma vida – não concentramos lá nenhuma emoção, nenhum encanto ou nenhuma descoberta visual exaltante, a pintura está morta como acontece em tantas telas, sem ter importância o trabalho minucioso e competente que lá foi aplicado. É necessário que haja num artista, seja ele qual for, uma certa pureza de alma. A divisa que deveria estar escrita no frontão de todas as escolas de arte é esta: ‘Bem-aventurados os puros de espírito, porque será deles o reino dos céus’.” E confidenciou o seu processo artístico: “Aprendi a trabalhar sem ser a partir de objectos, a não ter modelos, a não ter uma técnica. Por vezes, tratando-se de uma aguarela trabalhei directamente com o modelo. Só o utilizo o modelo quando a pintura já está concluída, quando posso olhar para o modelo e captar um qualquer pormenor que a visão me faz falhar, ou modificar qualquer coisa que sinto insatisfatória e não percebo porquê”.
As suas pinturas a óleo chamaram à atenção de amigos galeristas, que levaram as obras de Itália até Londres, onde se realizou a exposição na Galeria Warren. Mais um escândalo, até que a polícia encerrou a exposição, depois de ser vista por mais de 13 mil visitantes. D. H. Lawrence escreveu um belíssimo texto introdutório ao álbum que reproduzia as suas obras pictóricas, “Introdução a estas pinturas”, incluído neste livro. É um longíssimo ensaio que começa pela objurgatória dos medos ingleses na arte, os seus preconceitos em torno da sexualidade, uma supermorbidez que afinava pelas doenças sexuais, e é provocatório: “As famílias reais da Inglaterra e da Escócia eram sifilíticas. Eduardo e Isabel nasceram com as consequências hereditárias da doença. Por causa dela, Eduardo VI morreu ainda rapaz. Maria I morreu sem filhos e com uma enorme depressão. Isabel não tinha sobrancelhas, os seus dentes apodreceram, e é provável que se tenha sentido de algum modo uma pobre criatura totalmente inadequada ao casamento. Assim se extinguiram os Tudor, e foi possível que outro desafortunado sifilítico de nascença tenha chegado ao trono na pessoa de Jaime I”.
É este o quadro explicativo que o artista encontra para descer ao abismo do terror aos instintos. Onde os artistas ingleses dão cartas é na paisagem, que para Lawrence não faz apelo às respostas mais poderosas da imaginação humana, a sensuais e apaixonadas respostas. E é nesta deambulação que Lawrence exalta a arte de Cézanne e a simbologia das suas maçãs: “As maçãs de Cézanne são uma verdadeira tentativa de deixar que a maça exista na sua entidade independente, sem lhe ser inoculada uma emoção pessoal. Digamos que o grande esforço de Cézanne foi empurrar a maçã para longe, e deixá-la viver a sua própria vida. E embora isto pareça simples de fazer, desde há milhares de anos é o primeiro sinal autêntico de o homem querer conceder à matéria uma existência real. Cézanne sentiu-o na pintura quando se compadeceu da maçã. De repente sentiu a tirania mental, a lívida e já gasta arrogância do espírito, a consciência mental, o ego preso ao céu azul celeste que ele próprio tinha pintado”. Lawrence sente esta glorificação da existência da matéria e volta à sua observação para a história da nossa época e é a da crucificação do corpo procriador em proveito da glorificação do espírito.
É um ensaio encomiástico sobre o revolucionário Cézanne, o génio que gerou a mobilidade das formas, das cores e da relação com o espaço.
Depois deste ensaio, Aníbal Fernandes colige elementos importantes sobre a pintura de Lawrence: “Lawrence sonhou-se em verso, pouco tempo antes deste sopro que foi a sua morte na Primavera de 1930”. E cita Aldous Huxley que se fascinou pela vitalidade da beleza pictórica de Lawrence, sinal da sua vitalidade, aquela pintura funcionou nos seus últimos anos de vida como uma chama que continuava miraculosamente a arder e que só se apagou com a sua morte.
Obra enriquecida com importantes quadros de Cézanne e com uma antologia pictórica de Lawrence apresentada na célebre exposição na Galeria Warren em Londres.