É num discreto e melancólico entardecer que, desgostosamente, me embrenho no ofício da escrita. Frustra-me não ser político, diplomata, analista, apresentador, comentador, ou jogador de futebol. Porque é nas televisões que o mundo acontece.
Foi através delas que percebi o quanto fazia tempo que o edifício da Câmara Municipal de Lisboa não conhecia um mar de gente assim, com o imaginário alimentado por lendas de leões, a festejar, a idolatrar o que nos resta da nossa vincada identidade nacional – o clubístico e mercantilizado futebol.
Divirto-me imenso. Acho bem que o país meta deputados na Europa, até mesmo porque foi o único sítio onde nunca esteve
Compreende-se porquê. É nas emoções dos jogos que, não mais da política, que se cria um espaço tribal de identificação de religiosas venerações e se processa, segundo Elias, a patologização das classes populares. Qual espaço de pacificação, é nos estádios que podemos fazer uma preciosa e elevada catarse da nossa vida cinzenta. É lá, nessa “Busca da Excitação”, que têm lugar os confrontos guerreiros e que nos são permitidas purificadoras transgressões. Podermos intervir berrando, apupando, ou insultando, quando necessário e conveniente, árbitros, jogadores, dirigentes, rivais, como forma de consagração da honra e glória do nosso clube.
Judiarias não podemos fazer, acusados que estamos de antissemitismo, tampouco macaquices como a venda bilhetes no mercado negro, sem perigo da acusação de xenofobia. Ainda não consegui compreender a designação chauvinista desta economia subterrânea, tampouco da Black Friday.
Deixando-me de elucubrações, se eu fosse político faria assim mesmo: chamaria os clubes vencedores a uma praça garantidamente mais cheia de adeptos do quem chama os partidos a Belém. É uma ternura maternal ter políticos verborreicos, que saibam dizer, como ninguém: “Hoje, Lisboa é verde e branca, e a cidade vive a glória do Sporting, que vem do esforço, dedicação e muita devoção”.
Mais ágil que o famoso meteoro, privilegiando os céus de Portugal, só desprestigiado pela sua queda em Castro Daire, o autarca lembraria o feito citadino, conducente a que “o Marquês estivesse cheio, de felicidade e alegria que se espalharia pelos corações de milhões, no país e em todo o mundo”, no dia 05 de maio. Finalmente, eu poderia associar as tintas de Cesário Verde, a uma colorida epidemia de festas, como se o país tivesse descoberto o caminho galáctico para o júbilo.
No écran ao lado, discute-se as europeias, onde se estreiam candidatos pontuados pelos comentadores, como se intentassem o destronamento de massa crítica aos espectadores.
Divirto-me imenso. Acho bem que o país meta deputados na Europa, até mesmo porque foi o único sítio onde nunca esteve. O senão é ela estar em guerra. E lá vem à baila a fatídica Ucrânia. Eu, que sou amante da paz e do pleno gozo da vida, não consigo ter um olhar benevolente para a posição do PCP no conflito. Como é possível pretender embrulhá-lo num meticuloso mecanismo de inclemência e indiferença, ao encerrá-lo numa kantiana figura poética da paz, através de um esmiuçado conceito “de cessar-fogo” e de “abertura de uma via negocial”. De onde terão emergido tão mansas deias, de suspensão da revolta contra a opressão, tendo, na apaziguadora paz, a sugestiva claudicação, incitadora de infinitos retrocessos na sua soberania?
Tudo isso porque, com a patológica invasão, viria a crueldade perpetradora de um catálogo de horrores, de tortura, ultraje, perseguição e morte indiscriminada de cidadãos indefesos, chamados civis para os efeitos mais convenientes.
Tudo porque invadiram as suas moradas, tumultuando-lhes a vida e massacrando-os em Bucha. Tudo porque os fizeram entrar numa insólita História, de modo brusco e cruel, confiscando-lhes o sossego e estilhaçando-lhes as entranhas.
Que paz seria possível extrair quando, mal nos sentámos, pensando estar perto do fim de uma cínica operação especial, tal insistia em querer continuar para lá da História, associada ao rótulo do seu transgressor, querendo fazer com que saíam dela?
Não parece aceitável que haja quem queira embrulhar o conflito na construção de um meticuloso mecanismo de inclemência e indiferença, investido da idílica figura “do imprescindível cessar-fogo” e a “abertura de uma via negocial” , do diálogo para resolver disputas. Porque “a solução não é a guerra, é a paz e a cooperação”, diz-se! Que narrativa repleta de tão valiosa lição! Que bonita moldura, a adornar a inversão do real, entrouxada nas vestimentas da guerra! Que cortejo de ideias mansas, pretendendo suspender a revolta contra a opressão, e que têm na apaziguadora paz, a sugestiva claudicação, num terreno minado, que incita a infinitos retrocessos na sua soberania.
É chocante esta mistura que torna pouco credível o promiscuo desejo da representação do PC, na Europa, e a sua narrativa perecida à de quem vive num asteroide.
Pronto! Agora que já andava divertido, a pensar no festival do perceve, a viver a minha vidinha, sem autocontrolo pulsional, entrouxado nas minhas vestimentas, de estilo perfeito para todas as estações, de cachecol na cabeça, lata de cerveja na mão, óculos escuros e boné no disfarce, lá me sobreveio a veia da “porca” da política a estragar isto tudo.
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