Aconteça algum adulto cruzar caminho com uma criança que apenas vagamente conhece e será inevitável a pergunta: o que queres ser quando fores grande? A questão serve, em primeiro lugar, para preencher a falta de assunto que vem da enorme distância que separa o mundo dos miúdos do mundo dos adultos. Em segundo lugar, a questão parece servir também a função de lembrar ao mais jovem interlocutor que a vida que conhece não é senão um “caminho de ladrilho amarelo” com destino ao propósito principal de qualquer ser humano: a ocupação.
A qualidade de ocupado parece cada vez mais algo que se “é” do que um estado a que se chega. Muitos leitores não hesitarão em descrever-se como cronicamente ocupados por obrigações, responsabilidades laborais, compromissos familiares, e um sem número de tarefas que encurtam horários de refeição, tempo de sono, oportunidades de convívio ou simples oportunidades de não fazer nada. Para muitos, não se trata já de uma hora, dia ou semana de maior ocupação, mas um estado permanente de absorção por aquilo que se tem de fazer, em troca daquilo que se quer ou se gosta de fazer.
A cigarra e a formiga
Embora seja frequente pensarmos na ocupação excessiva como um sintoma da vida moderna, progressivamente mais complexa e urbanizada desde a revolução industrial, é importante lembrar que a glorificação do trabalho é milenar. Esopo (620 a.C. – 564 a.C.), por exemplo, deixou-nos a essência desta moral na fábula da cigarra e da formiga. Chegado o final do Outono, a cigarra faminta suplica à formiga por algo de comer. A formiga, perplexa por saber que a cigarra cantou todo o verão esquecendo-se de recolher alimento para a época fria, encolhe os ombros em desdém e recomenda-lhe que continue a dançar.
Até aos dias de hoje não faltam outras apologias ao trabalho, na forma de provérbios ou na grande riqueza de adjetivos que encontramos para classificar os ociosos. É neste contexto que, na segunda do século XIX, o autor escocês Robert Louis Stevenson atreve-se a fazer aquilo que terá sido o primeiro grande elogio… ao ócio. A Apologia do Ócio (1877) é um ensaio que desenvolve um conjunto de ideias presumivelmente tão polémicas à época como aos dias de hoje. Defende que os livros não podem substituir a vida e que não se aprende mais numa sala de aula do que junto a um rio, a uma montanha ou a olhar o céu. Mas o principal argumento do ensaio está na ideia de que existe virtude no ócio, assim que se esclareça devidamente o que ele significa: “O ócio não consiste em fazer coisa nenhuma, mas sim em fazer muitas das coisas não reconhecidas pelas formulações dogmáticas da classe dominante.”
Para que serve o ócio?
A perspicácia de Stevenson parece estar nesta constatação de que o a ocupação e a produtividade não são a mesma coisa. Olhando para as rotinas diárias de figuras eminentes como Darwin ou Charles Dickens encontramos jornadas de trabalho bastante reduzidas face aos padrões atuais. De ambos diz-se terem dedicado cerca de 4 a 5 horas diárias a trabalho intenso. A rotina de Winston Churchill é igualmente célebre, não apenas pelo hábito de trabalhar na cama e na banheira (onde não faltava whiskey e soda), mas também por dedicar parte da sua jornada diária a passear no jardim e, ainda, por não dispensar uma sesta a meio da tarde.
Estes exemplos aparentemente anacrónicos poderão ser surpreendentemente úteis para o atual debate acerca do tempo dedicado ao trabalho. Em Portugal, a semana de quatro dias tem recebido particular atenção, estando na agenda para a atual legislatura. Este foi também um dos temas em debate recentemente no 5º congresso da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Ainda que a proposta não seja isenta de problemas, as experiências conduzidas até aqui parecem apontar para benefícios para o bem-estar e para a produtividade analisada em proporção (por exemplo, aquilo que cada pessoa é capaz de produzir numa hora de trabalho).
Uma das obras de referência para entender a proposta da semana de 4 dias é Friday is the new Saturday (2021) de Pedro Gomes, professor de Economia na Universidade de Londres. Um dos argumentos mais relevantes a favor da ideia está precisamente nas possibilidades de inovação que o ócio permite. Henry Ford mudou o mundo quando desenvolveu o seu primeiro protótipo de veículo com motor a combustão. Curiosamente, foi durante o seu (pouco) tempo livre que o fez, numa altura em que trabalhava como engenheiro para a Detroit Electric Company.
Aquilo que parece resultar destes exemplos é que trabalho e ócio não estão necessariamente em contradição. O tempo de lazer é essencial para garantir bem-estar e saúde psicológica, mas também abre espaço para a inovação e para a criatividade. Pensar que muitas das ideias que mudaram o mundo despontaram nos tempos livres deve obrigar-nos pelo menos a corrigir a injustiça milenar que tem sido cometida contra o ócio. Pelo seu contributo para a humanidade, é necessário que não mais seja confundido com preguiça ou falta de propósito, mas como um tempo necessário para cultivar intelecto, curiosidade e presença.