“Nós temos o melhor país do mundo”! Seria o tema instigante de Marcelo Rebelo de Sousa, em Boston. Defender um Portugal “independente do atraso, da ignorância, da pobreza, da injustiça, da dívida, da sujeição” e “livre da prepotência, da demagogia, do pensamento único, da xenofobia e do racismo”, constituiriam elementos de composição da sua estimulante narrativa, no Porto. Já a exagerada afirmação, em Ponta Delgada, de que Portugal é um país destinado a um “universalismo fraternal”, conceito que evidencia a nossa ligação enquanto Homens, independentemente das diferenças culturais, religiosas, étnicas ou sociais, só poderia emergir de um puro engano ou autoengano, por via da interpretação do problema ético-estético da criação de si próprio.
Com efeito, trata-se de toda uma preciosa compilação de clichés do Presidente da República, associados a uma espécie de plasticidade intrínseca ao relacionamento da nossa portugalidade com outras culturas, desconhecendo, exatamente, de onde lhe vêm, por se tratar de ideias resistentes de imunidade, do “não racismo dos portugueses”, embora presumamos as suas raízes.
Quando há meio século cantávamos “Angola é nossa”, um hino heroico e triunfalista, incumbido de abrir e fechar as emissões de rádio e trauteado nas escolas como incentivo aos portugueses na manutenção das colónias e do império, perante a vaga descolonizadora, as pressões internacionais e o isolacionismo que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, não interrogávamos a História, por parecer óbvia a junção cosmovisionária de uma justificação ideológica com uma aspiração económica.
Os Impérios do “Brasil”, da “Pimenta”, na Índia, tinham sido derrubados, restando-nos apenas o “Africano”, como chave de um futuro próspero, de um vasto e rico território, que poderia alicerçar-se num nostálgico regresso a tempos gloriosos de antanho. Tratar-se-ia de uma pura ilusão, conquanto o mundo já tinha secado o século XVII, Angola não era o Brasil, tampouco a África, dita portuguesa, possuía infraestruturas necessárias à edificação do pilar de um desenvolvimento económico sustentado, nem Portugal tinha os meios para as edificar.
Naqueles Algarves de Além-Mar, a aurora dos africanos brigava pela independência, com saltos bruscos que prometiam a sua subversão. Não estavam mais dispostos a submeterem-se aos desígnios de S. Bento, pelo que o sonho de construção de uma nova aura dourada não passava de uma utopia.
Na conexão entre política e psicanálise, atafulhávamo-nos num severo autismo nacionalista, teimando no imperativo da “missão histórica” de colonizar e civilizar, com o carácter inalienável e indivisível da nação multirracial e pluricontinental, com a salvaguarda da “herança sagrada” que era o Império e com um etnocêntrico “darwinismo social”, que justificava o domínio dos europeus sobre os africanos, persistindo em fazer da vida naquelas paragens uma oportunidade única.
E eis que me veio ao pensamento o texto de João Filipe Marques, professor na Universidade do Algarve, intitulado “Racistas são os outros! Reflexões sobre as origens do mito do «não racismo» dos portugueses”, no qual o autor se questiona se a tal insistência estapafúrdia – a adjetivação é minha –, de tentar convencer os portugueses e o mundo da inexistência de racismo na «essência» do ser português, bem como da «harmonia» racial vivida nas colónias, bem plasmada na apropriação da doutrina lusotropicalista de Gilberto Freyre pelo Estado Novo, em período posterior à Segunda Guerra Mundial, não presidirão paradoxais ecos daquela época? Não continuaremos nós a alimentar essa subliminar sagrada e etnocêntrica herança?
É neste registo que não posso deixar de atribuir à produção retórica de Marcelo ecos subliminares dessa sagrada e etnocêntrica herança, vertidos na sua doutrina cosmogónica identitária, filiada numa corrente de pensamento que marcou inumeráveis prerrogativas da expansão portuguesa no mundo.
Persistindo no mito do “universalismo fraternal”, tão próximo do registo mitográfico nacional do “não-racismo”, historicamente construído pelas elites políticas com finalidades pragmáticas, a construção mitológica marcelista revela-se um autêntico fingimento relativo a crenças, virtudes, ideias e sentimentos que os portugueses não possuem. O fito parecerá então destinar-se à modelação do nosso racismo contemporâneo, numa persistente negação que apenas justifica e prolonga padecimentos e uma medrosa ausência de pedagogia e de um efetivo combate ao racismo e à discriminação.
Se o racismo nada tem a ver com as diferenças entre os indivíduos, mas com a mobilização negativa das mesmas, fazendo, do Outro, um antro de inferioridades alicerçadas em noções e raça, etnia, cor da pele, se são essas mobilizações que presidem aos discursos de ódio e de incitamento à violência que amplia a estigmatização, a insegurança, a exclusão social e o isolamento dos grupos alvo dessa discriminação, admitamos o racismo, quer como assombro latente na cultura que nos habita, quer como fenómeno servil à paranóia do poder, que nos impede de dar o salto para uma humanidade mais sofisticada.
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