Existe um novo acessório de utilização obrigatória que está a modificar tanto os nossos hábitos que talvez não tenhamos ainda a noção do seu devido alcance: a máscara. O governo decretou o seu uso obrigatório portodos aquelesquepermaneçam ou acedam a espaços interiores fechados, ou utilizem os transportes públicos. De facto, verificamos uma utilização generalizada da máscara: no queixo ou no pescoço, na testa ou em jeito de bandolete; pendurada na orelha ou no cordão dos óculos ao pescoço. Às vezes, a máscara até aparece bem colocada, sobre o nariz e a boca, protegendo as vias respiratórias.
A máscara também viaja guardada de muito diversas formas, aos tombos na carteira das senhoras misturando-se com toda a tralha que lá existe, esticadinha na carteira dos homens como se de mais uma nota se tratasse. E claro que sendo necessária, ela é colocada de modo automático, sem um pingo de reflexão sobre a legitimidade da sua função depois de se ter roçado com todos estes elementos de higiene duvidosa.
Poupa-se dinheiro na esteticista, pois já não há que realizar a depilação do buço e não fazem falta os batons na cor da moda. Porém, acresce o cuidado com os olhos e as sobrancelhas. De repente, as mulheres latinas tornam-se turcas ou marroquinas, com esta espécie de burca sanitária que só nos deixa livre o olhar. Mas agora é verão e os olhos ocultam-se debaixo dos óculos de sol… Saímos à rua e não reconhecemos ninguém, e ninguém nos reconhece a nós.
A máscara modificou também os rituais de chegada a casa. Quem vive em blocos de apartamentos coloca-a à entrada do prédio, permanece com ela posta no elevador e, conscienciosamente, não a retira ao chegar ao seu andar. Há primeiro que descalçar os sapatos e deixa-los cá fora, abrir cuidadosamente a porta tentando não tocar em nada, e realizar um passo de equilibrista do sapato da rua para o chinelo caseiro. Uma vez dentro, há que lavar muito bem as mãos, e depois, só depois, tirar a máscara. Entretanto, os filhos já se desinteressaram da chegada do progenitor/a. Não há a corrida para os receber, nem o beijo ou o abraço espontâneo.
A máscara modificou o gesto. Não se vendo se sorrimos ou se esboçamos algum esgar, as pessoas tentam comunicar da forma possível e desatam a esbracejar. Jamais vi tanto gesticular como agora! Ao aumento do volume da voz, pois há que falar através da máscara, corresponde também uma desengonçada dança dos membros superiores que tentam, em vão, suprir a falta de expressão facial.
Inevitavelmente olhamos nos olhos do outro, para compreender e tentar ser compreendidos. Antes da máscara tal não seria justificável, poderia ser tomado como um acto invasivo. O olhar directamente nos olhos do outro é algo muito íntimo e, por isso mesmo, sujeito a algum pudor entre pessoas que não se conhecem, quase um tabu. Agora, a máscara não nos deixa alternativa. A cara, o rosto todo, resume-se quase somente ao olhar.
Antes da pandemia a nossa época parecia caracterizar-se por, nas palavras do filósofo italiano Mário Perniola, vivermos num “já sentido”. No seu livro Do Sentirpublicado em 1991 o filósofo afirma: “Aos nossos avós, os objectos, as pessoas, os acontecimentos apresentavam-se como algo para ser sentido, para ser vivido como uma experiência interior, causa de alegria ou de dor, objecto de participação sensorial, emotiva, espiritual, ou, pelo contrário, algo de que não se apercebiam ou se recusavam a perceber. A nós, pelo contrário, os objectos, as pessoas, os acontecimentos apresentam-se como algo já sentido, que vem ocupar-nos com uma tonalidade sensorial, emotiva, espiritual já determinada.”
Estamos a viver algo que nunca se viveu antes
Agora estamos a viver algo que nunca se viveu antes. Após anos de sensações mastigadas, de condutas pre-estabelecidas, de sentires recalcados a cheirar a mofo, eis que nos encontramos em território desconhecido. Embora existam normas de conduta, desde a etiqueta respiratória aos novos hábitos que se requerem: lavar frequentemente as mãos, uso obrigatório de máscara e distanciamento social, não há nada sobre o sentir de tudo isto. Não existe nem um manual, nem um exemplo a seguir, que nos mostre como gerir os sentimentos que toda esta modificação de comportamentos sociais acarreta. Este estado de coisas dá-se, precisamente, a jusante de décadas que privilegiaram o agir. A actividade tem tido um estatuto preponderante, a quietude, a passividade, o sentir, foram discriminados e adquiriram um estatuto de “menoridade ontológica”. Como conciliar isto com o dever cívico de recolhimento domiciliário?
Desde os primórdios que a filosofia ocidental teve como meta a exclusão do sentir, em prol da objectividade, da imparcialidade, da independência, da universalidade, etc., etc. Este objectivo foi praticamente alcançado, contudo, os seus efeitos secundários não se fizeram esperar: Como bem aponta Mário Perniola: “a reflexão e o eco do já sentido substituiu o pensamento: tanto o agir como o pensar estão subordinados à negociação permanente das mercadorias sensológicas que pretendem esgotar todo o universo contemporâneo. Este é simultaneamente a realização e a abolição do projecto metafísico: por um lado foi de facto desprezado todo o impulso autónomo do corpo e dos afectos através da alienação do sentir, por outro tornou-se também vão todo o primado da actividade intelectual.”
Assistimos também, um pouco por todo o mundo, a uma tensão entre a racionalidade e a animalidade. Se por um lado governantes e governados parecem unir esforços para estancar esta pandemia, por outro lado, surgem irrupções poder-se-ía dizer de cariz dionisíaco: a vontade da festa, do contacto com o outro, da diversão, do extravasamento, sobrepõe-se à racionalidade. Após décadas de desprezo pelo sentir, ele surge agora como uma fera indomável, egoísta e indiferente ao contexto, ao meio, às necessidades e direitos do próximo. O respeito desvaneceu-se. A necessidade individual surge de forma tão gritante que esquece que a irracionalidade de uns afecta impreterivelmente a vida de todos. Cegos para a falsidade da existência individual e separada boicotamos a possibilidade de nos salvarmos.
Em tempo de rostos com máscara, nunca foi tão difícil evitar o face a face consigo próprio. À máscara exterior parece impreterivelmente corresponder o desmascarar interior, em camadas sucessivas. A paragem, o confinamento, obrigou-nos a isso. Não conseguimos continuar a fugir de nos sentirmos.
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de julho)