Nesta recém-chegada primavera, mergulho nos ecos da 1ª República e regresso ao gosto socrático de pensar a nossa vida, em vez de simplesmente vive-la de forma rápida e tragicamente superficial.
Recordo que, não há muito, estávamos no alvorecer de uma agitada envolvência emocional. Aparentando náufragos à deriva, vivíamos o deslocamento do nosso nomadismo eleitoral para suposta terra firme, a que se somavam afinadas palavras de ordem, orquestradas com enérgicos vivas, num vaivém de sonoras marés: ganhámos… ganhámos… ganhámos!
Tínhamo-nos lançado na realidade de forma brutal, teimando em não fazer chegar ao seu fim uma época morna. Saltávamos e pulávamos de contentamento, como se algo de radical tivesse transluzido, como se nos deparássemos com a abertura a futuros sorridentes e cristalinos. Afinal, de modo ambíguo, depois de colocadas as lentes por detrás do olhar da nossa câmara, parece que a máquina apenas conseguiu enfatizar, com clareza, o traçado da edificação de muros, paredes, fossos, barbacãs, muralhas e torres de defesa, a que nos vamos habituando, sob a capa do pluralismo das ideias.
Sobrevoados pela coruja de Minerva que levantava voo ao cair do crepúsculo, anteparando-se com as ruínas do passado, parecíamos dominar as trevas. Esquecíamos que, finda aquela fase onírica, iríamos enfrentar a dura realidade de nunca termos renunciado andar de servilidade em servilidade, deixando-nos apenas aprisionar por novos amos. Teria sido na ilusão da novidade que apostámos, como se ela fosse concretizadora dos nossos sonhos, nas baías da expetativa de uma nova e fluorescente relação com a penumbra prometeica deste avassalador mundo moderno.
Tudo indica que continuaremos a forjar entes imaginários, como se as sereias, os centauros, os impossíveis nas cidades realizassem o belo e o justo, pela imposição da bandeira de um qualquer império. Para tanto, continuaremos a apostar, crentes na soberania daqueles que serão capazes de tudo resolver, por heroicidade ou magia, em detrimento dos que percecionamos nada fazerem, por torpor ou desencanto.
Continuamos investidos da crença fundada de que alguns têm o condão de romper com a viciada estrutura e contruir o feliz fim da História, não obstante montarem sob formas rejuvenescidas, muitos dos velhos fundamentos em que assetam os seus projetos de vida coletiva. Para tanto, impor-se-á a crença no investimento em novos seres, num novo real, que origine novas formas, outras composições e produtividades, garantindo a expetativa certa de podermos vir a consumar novas e inéditas distribuições.
Indiciando vestígios de uma nova vida feita de aparência e de imagens, é bem possível que ainda nos sobrevenha a inevitabilidade de uma economia de salvação teológica.
A rebelião do povo sumir-se-á, finalmente, na distribuição de uma realidade material e sensível ao domicílio de cada um. Prenhes de ilusões, assiste-nos a esperança de que todos iremos ter, em nossas casas, o assomo de um registo poético e místico da terra abençoada pelo enaltecimento de uma vida santa, bucólica, idílica, alinhada pela nostalgia de uma generosa ordem semelhante à que já tivemos.
E, como diria Samuel Beckett, “é mais fácil erigir um altar do que sobre ele fazer descer uma divindade para o habitar”.
Até é possível dar de barato que esta inquietação possa deixar antever alguma assertividade na imprecação do ancião do Restelo, que, meneando a cabeça, sugere a infalibilidade de constatarmos que os homens estarão há milénios no fim da sua evolução, mas a Humanidade, como espécie, está apenas no seu começo. É que a História, como espiral de excessos de violência, dever-nos-ia servir de lição. Mas, não! Ela tem-se esgueirado a toda as formas de piedade, a todos os olhares em queda na indiferença, nos automatismos, que não têm estado à altura da paragem das hemorragias.
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