Entre muitas pessoas que conheci nesse Algarve (ainda desconhecido) que é o interior da serra, houve uma que me marcou profundamente – a Ti Adélia, que no início dos anos noventa, então com 78 anos curtidos pelo sol da terra que ainda amanhava, “pr´a gente poder comer qualquer coisinha”, afirmava que o seu maior sonho era “entrar por esse mar fora e sentir a água, aquela água tanta e tão forte”.
A idosa, que vivia num monte isolado do concelho de Alcoutim, paredes-meias com o Alentejo, com mais seis pessoas, “todos velhos como eu”, poucas vezes saíra do seu sítio e a única água que vislumbrara tinha sido o ribeiro que corre junto ao monte e o Guadiana, o rio que banha a sede do concelho e faz fronteira com terras espanholas. “Uma vez deu-me um achaque e estive no hospital de Vila Real de Santo António, mas como fui e vim na ambulância, não cheguei a conhecer o mar, essas praias tão lindas que dizem há lá por baixo, com muita areia”…
Prometi-lhe, nesse dia de início de Primavera, que voltaria no Verão e iria mostrar-lhe o mar. E assim foi. Um belo dia, em finais de Julho, aventurei-me sozinha por esses caminhos fora e fui cumprir a promessa que fizera à ti Adélia. A minha convidada vestiu a sua melhor roupinha, trocou o lenço da cabeça carcomido pelo sol por outro que ainda não tinha sido estreado e lá foi dando gritinhos de alegria na descida até Monte Gordo, a praia que escolhi para a sua inauguração balnear.
Ao entusiasmo do areal, “ai que areia tão fininha e dourada”, sucedeu o medo do mar. “Vá lá, ti Adélia, molhe os pés e sinta a água”, incentivava-a, observando-a cada vez mais afoita, a sentir a água bater-lhe nas pernas e a inundar-lhe a alma de felicidade. “Ah…o mar é tão bonito!”…”Ai que me molho toda!”…
A Ti Adélia, que vivia com a sua irmã, nunca casou nem teve filhos. Perdeu-se de amores por um jovem contrabandista de tabaco que um dia pediu aos pais para se esconder em casa durante umas semanas, fugido à polícia, e nunca mais voltou. “Aquilo é que era um belo rapaz! Alto, moreno, elegante e bem vestido! E muito bem-falante”, contou-me, adiantando que o curto período da sua convivência foi suficiente para se apaixonar por ele. “Quando foi embora, prometeu-me que voltaria um dia para casarmos e vivermos junto ao mar, porque dizia que gostava muito de mim”, disseram aqueles olhinhos pequeninos mas intensamente azuis e brilhantes, adiantando que o seu Jerónimo lhe descrevera ao mais ínfimo pormenor as cidades e as praias do litoral algarvio e andaluz, por onde “trabalhava”…
”Ele tinha 30, eu 20… nunca voltou e eu nunca conheci outro homem”… afirmou com ar nostálgico, mas resignado. Foi ajudando a criar os irmãos, cuidou dos pais antes destes morrerem, tinha por companhia a irmã, Deolinda. “Ficámos solteiras. Por aqui não havia muitos rapazes”. Com efeito, os homens do monte emigraram para França e por lá ficaram. Regressaram ao monte já “com vida feita”. “Ficámos nós nesta parvalhêra, com os nossos sonhos”, rematou a Ti Adélia.
Prometi-lhe voltar de novo. Nunca lá voltei.
Caçadores de Histórias
A vida afastou-a do jornalismo. Mas, jornalista por um dia – e foram anos – jornalista por toda a vida. Paula Martinheira nunca perdeu o sentido da escrita e guarda em si memórias que lhe preencheram os dias. Como aquele em que levou Adélia a ver o mar. Um gesto simples que quebrou a rotina de uma vida circunscrita a montes à sua volta no interior serrano algarvio, mostrando que a felicidade não requer grandes artifícios. Por vezes, sem se dar por ela, vem devagarinho, como a espuma da praia molhando-nos os pés, para logo a seguir nos inundar a alma de uma alegria suprema! R.S.
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