Quando importunadas por estranhos muitas vezes as mulheres riem e fazem-se de tontas. Mais ou menos como fez a estudante do vídeo que tem corrido as redes sociais, que a mostra a ser assediada por um motorista quando se encontrava sozinha com ele num autocarro, em Coimbra. E sabem porque o fazemos? Não é por acharmos piada, é por termos medo do que pode acontecer se ripostarmos quando temos alguém maior que nós a encurralar-nos.
Há uns anos andava eu a viajar sozinha pela Argentina quando marquei quarto num hostel. O espaço tinha sido sugerido por outros viajantes que havia conhecido pelo caminho, que me recomendavam o projeto recente de um homem, viúvo e com vários filhos, que estava a tentar melhorar as condições de vida da família. O sítio não era incrível, talvez por isso estivesse praticamente vazio, mas fui muito bem recebida. Tal como em tantas outras situações, o facto de viajar sozinha mereceu apreço e o senhor convidou-me para me juntar a um churrasco de família e amigos que ia fazer nessa noite. Juntei-me, claro está. Jantámos e rimos. Os miúdos foram dormir, os amigos foram embora e eu fiquei no lobby a aproveitar o wi-fi para responder a emails antes de dormir. Ele ofereceu-me mais uma bebida e eu aceitei. Conversámos mais um bocado sobre os contextos dos nossos países, os desafios do turismo, dicas de viagem pela Argentina, e por aí fora. Foi ótimo. Deixou de o ser quando bocejei e disse que me ia deitar, ao que ele respondeu: “Então vamos os dois para o teu quarto”. A frase bateu-me como um par de estalos, nem sequer era uma pergunta, era uma afirmação.
Revi em frações de segundos aquela noite, autoquestionando-me quanto ao meu comportamento e palavras – como a larga maioria das mulheres faz nestes momentos – tentando encontrar uma explicação. Não havia. Olhei para ele, ri-me desconfortável, e gaguejei qualquer coisa como “não, eu estou muito cansada e vou dormir”. Ele insistiu, como se fosse só uma certeza: “Ok, mas eu vou contigo para o quarto”. Voltei a esboçar um sorriso embaraçado, como se fosse tonta e não estivesse a perceber, agradeci a gentileza e disse que me lembrava do caminho, que não era preciso ele vir. Ele voltou a dizer que devíamos ir os dois. E eu reforcei que eu ia dormir, que ele devia ir fazer o mesmo, e desejei-lhe boa noite, com um bastante claro “até amanhã”. Sim, ele foi inadequado, insistente, e eu ainda lhe agradeci. Basicamente porque tive medo do que me podia acontecer se respondesse de forma assertiva a um homem com o dobro do meu tamanho, estando ali à noite, sozinha, num hostel praticamente vazio. Não foi só desconforto, foi medo. Portanto, sim, eu sorri, até fui dócil e virei costas com ar descontraído, porém gelada por dentro, temendo que ele viesse atrás. Não veio, mas nessa noite não preguei olho. Arrastei uma mesa de cabeceira para travar a porta caso a tentassem abrir durante a noite (de pouco valia, eu sei, mas serviu para me acalmar). Tive medo que aquele homem não soubesse lidar com o “não” e me tentasse violar. E fiquei a pensar horas a fio que, se calhar, as pessoas tinham razão quando me diziam que isto de viajar sozinha, sendo mulher, era estar a pôr-me a jeito (sobre isto também já escrevi por aqui há uns anos, porque não faz qualquer sentido).
Lembrei-me deste episódio quando vi o vídeo que este fim de semana circulou nas redes sociais, com uma estudante de Coimbra a ser importunada por um motorista de autocarro quando se encontrava sozinha com ele dentro do veículo, por volta das 10h da manhã. A moça está sentada e ele aproxima-se. Basicamente mete-se à frente dela, encurralando-a portanto. Sendo eu mulher, e já tendo estado numa situação de assédio com alguém maior que eu a bloquear-me um potencial espaço de fuga, foi automaticamente algo em que reparei. Ele enceta uma conversa de teor inapropriado, sem ser totalmente explícito, mas deixando claro o intuito das suas afirmações. Chega a tocar-lhe. A rapariga vai desconversando, numa tentativa de desvalorização do que ele lhe diz. Finge não entender o que ele está a sugerir com as meias palavras, como se fosse tonta. Propõe-lhe que ele vá conduzir o autocarro. Deixa-lhe claro que tem trabalhos da escola para fazer, talvez numa tentativa de lhe mostrar que não passa de uma miúda. Diz-lhe várias vezes a palavra “não”. E ele insiste naquela abordagem nojenta, que só acontece porque, obviamente, ele sabe que está em vantagem: o autocarro está vazio, não há testemunhas, nem tampouco alguém que interceda por ela. Ela está sentada e ele de pé, ela não tem por onde fugir, ele é maior que ela. A violência sexual, na qual está contemplado o assédio, vive deste jogo de poder desfasado entre agressor e vítima. Muitas vezes o prazer está nisto, na intimidação, na humilhação, no medo que se provoca, na constatação da superioridade, e não na concretização final de qualquer contacto físico. Mas isso não torna o ato menos grave, nem o impacto mais pequeno nas pessoas que passam por situações assim.
SE ELA NÃO TIVESSE FILMADO ALGUÉM ACREDITAVA NELA?
A rapariga deste vídeo teve o sangue-frio de colocar o telemóvel a filmar, e muito provavelmente é apenas por isso, por existir esta prova concreta, que o homem está neste momento a ser alvo de um inquérito, suspenso da sua atividade profissional e a queixa às autoridades com trabalhos em curso. Tal como daquela vez em que uma mulher acusou um revisor da CP de assédio, após este ter feito um comentário inapropriado acerca da sua roupa e do seu corpo, mais especificamente sobre as suas mamas. Se nenhuma destas raparigas tivesse filmado o momento, provavelmente seria apenas a sua palavra contra a dele. E historicamente já se sabe o que acontece com esta equação: nada. Quem assedia continua impune, quem é assediado tem de engolir o desconforto, o asco, a humilhação, o medo e sensação de impotência, e meter na mochila das memórias – aquelas que fazem de nós quem nós somos e que condicionam a nossa vida – mais um episódio destes. Episódios que, invariavelmente, todas nós acumulamos desde miúdas. Tantas vezes com sentimentos de culpa e de vergonha pelo meio.
Acho que até posso generalizar quanto a isto, mas volto a mim novamente: quantas vezes, vivendo eu no centro de uma capital europeia, fiquei calada ao andar em transportes públicos a sentir que homens se roçavam em mim? Várias, principalmente quando era miúda. Ficava na dúvida se seria exagero ou impressão minha, mesmo quando todo o meu corpo se retraía. E tinha demasiada vergonha e medo do enxovalho que me podiam direcionar caso abrisse a boca. Quantas vezes respondi à letra a situações de assédio em locais públicos e tive como resposta frases agressivas e insultuosas? Tantas. “Vaca convencida” ou “sua grande puta” são duas das respostas que já me foram repetidas em diferentes momentos. Quantas vezes tive medo de andar de metro ou de autocarro sozinha à noite? Ou quantas vezes condicionei o meu movimento no espaço público, a minha vontade, os meus planos para evitar ser alvo de alguma tentativa de assédio e demais agressões? Perdi a conta. Por mais que nada disto seja normal, situações destas ainda fazem parte da normalidade do dia a dia das mulheres, miúdas e meninas mundo fora, Portugal incluído.
ELE ASSEDIOU-A, MAS ELA AGORA ESTÁ A ESTRAGAR-LHE A VIDA AO FAZER QUEIXA
Mesmo quando confrontadas com o tal vídeo que correu a Internet este fim de semana, muitas pessoas preferiram arranjar desculpas para o comportamento do condutor e razões para culpabilizar a vítima. Neste caso, o que mais tenho lido é “se ela se estava a rir era porque estava a gostar”. Ou o clássico dos clássicos, “como ela até se riu, o pobre do homem não percebeu e agora vão estragar-lhe a vida” ao meterem-lhe um processo disciplinar. Resumindo, aqui a vilã é ela. E o facto de ela ter repetido várias vezes a palavra “não” é posto de lado. O facto de o riso dela ser claramente um riso nervoso, de desconforto, também não interessa. Tal como eu fiz naquela noite na Argentina, ela riu como primeiro impulso, portanto estava a pedi-las. Se calhar aquele motorista até podia ter ido mais longe e eu, se formos a ver, até merecia ter sido violada.
Claro que o que também não falta são mulheres, imbuídas do machismo estrutural que nos serve de base a todos e todas, a dizerem que se fosse com elas era diferente. Que teriam saído do autocarro, que lhe tinham dado dois pares de estalos, e por aí fora. Acredito que boa parte destas mulheres nem têm noção de que ao fazerem isto não só estão a desacreditar a vítima, como a alimentar a bola de neve da violência sexual, machista e sistémica, que também as afeta a elas, direta ou indiretamente. Somos todas e todos muito bravos atrás de um ecrã, mas na vida real, da teoria à prática, quando temos alguém com superioridade física à nossa frente, que nos bloqueia o caminho, que insiste depois de vários “nãos”, que nos coloca nesta posição quando não há mais ninguém à volta, acreditem, a maioria das mulheres tem medo do que pode acontecer. E usa as estratégias que historicamente pautam a sobrevivência de vida no feminino: desconversamos, fazemo-nos de tontas, rimos, desvalorizamos o sucedido, chegamos mesmo a ser doces a responder, tudo para não corrermos o risco de ferir o ego ao agressor. Sim, ainda somos nós, já com segurança, honra e liberdade feridas, que temos de ter esse cuidado. Porque todas sabemos que não há nada mais perigoso do que um agressor frustrado e enfurecido ao ter o seu exercício de poder sabotado. E, lá no fundo, porque é a nossa vida que está em risco. Não compreendo como é que esta continua a não ser a grande questão no meio destas discussões, sinceramente.
Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.
Artigo de opinião publicado pelo nosso parceiro Expresso