“O filósofo observa e medita. É um espelho que pensa”.
Abílio de Guerra Junqueiro (1850-1923)
A ambiguidade do espelho é filosoficamente recorrente: Platão (427-347 a.c.) critica duramente as artes, o espelho, e todas as superfícies reflectoras que são simulacro da realidade e continuamente nos enganam; Plotino (204-270) sugere que a imagem de um ser recebe a influência do seu modelo como se fosse um espelho; Bachelard (1884-1962) afirma que o espelho é o Kriegspiel do amor ofensivo; Scheler (1874-1928), muito à semelhança do filósofo português Guerra Junqueiro (1850-1923), estabelece uma analogia entre o espelho e o pensamento considerando-o uma espécie de órgão de autocontemplação do universo.
“E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Mateus 7:3-5).
Existem dois aspectos do outro como espelho que esta parábola do evangelho nos mostra:
1) O outro exibe um defeito do qual nós também padecemos. Vemos facilmente a imperfeição no outro e mas somos cegos para a sua existência em nós próprios.
2) Possuímos um estranho impulso para “ajudar”. Por que motivo estaremos tão dispostos a aconselhar os outros, ou a criticá-los pensando que lhes fazemos bem?
O primeiro caso é um momento de reconhecimento, de tomada de consciência: “ah, afinal a falha é minha!” Num segundo momento o texto bíblico instiga-nos a refrear esta “ajuda” ao outro, e a reverter essa acção sobre nós próprios: Hipócritas, tirai primeiramente a trave do vosso olho! Que não é senão dizer que cada um, se quer ajudar o próximo, se quer melhorar o mundo, que trate mas é de se melhorar a si próprio! Esta vontade de ajudar o outro quando examinada cuidadosamente pode revelar uma origem muito menos nobre do que se supõe: ao “ajudar” colocamo-nos numa posição de superioridade em relação ao outro -coitadinho- que tanto precisa da nossa ajuda e quão ingrato é se não a aproveita!
Existe ainda um terceiro aspecto a explorar que não consta da parábola bíblica. Podemos, de facto, não padecer exactamente do mesmo defeito que vemos no outro. Que me mostra o espelho então? Neste caso o reflexo não é comportamental mas emocional. Sinto, por exemplo, desilusão, perplexidade, raiva, etc. O outro prejudica-nos e ficamos justamente zangados e irritados com ele. A raiva que sentimos é uma raiva justificada, temos toda a razão em reagir assim.
Esta raiva cheia de razão agarra-se a nós e nunca mais nos larga. Estende os seus tentáculos e aprisiona-nos num supostamente nobre sentido de justiça. No espelho, o outro mostrou-me as emoções negativas que ainda carrego comigo. Se a semente da raiva não estivesse em mim, não poderia germinar, certo? Vamos pensar sobre isto!
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