Os morcegos são a origem zoonótica provável de vários coronavírus que infectam seres humanos, incluindo o SARS-CoV-1 e o SARS-CoV-2, que causaram epidemias em larga escala.
Um novo estudo publicado na revista Science of the Total Environment fornece a primeira prova de um mecanismo pelo qual as alterações climáticas podem ter desempenhado um papel directo na emergência da SARS-CoV-2, o vírus responsável pela pandemia da COVID-19.
O estudo publicado no dia 1 de Maio de 2021 revelou mudanças em grande escala no tipo de vegetação na província Yunnan, no sul da China, e regiões adjacentes em Myanmar e Laos, ao longo do século XX. As alterações climáticas, incluindo aumentos de temperatura, luz solar e dióxido de carbono atmosférico, que afectam o crescimento de plantas e árvores, alteraram os habitats naturais, de arbustos tropicais para savanas tropicais e florestas decíduas (caducifólias). Isto criou um ambiente propicio para muitas espécies de morcegos que vivem predominantemente em florestas.
O número e espécies de coronavírus numa dada área está intimamente ligado ao número de diferentes espécies de morcegos presentes. O estudo agora publicado descobriu que mais 40 espécies de morcegos “mudaram-se” para a província Yunnan, no sul da China, no século passado, albergando cerca de mais de 100 tipos diferentes de coronavírus. Este “hotspot global” é a região onde os dados genéticos obtidos sugerem que o SARS-CoV-2 possa ter surgido.
“As alterações climáticas do século passado tornaram o habitat na província Yunnan do sul da China adequado para mais espécies de morcegos”, disse o Dr. Robert Beyer, investigador do Departamento de Zoologia da Universidade de Cambridge e primeiro autor do estudo.
Beyer acrescenta num comunicado: “Compreender como a distribuição global das espécies de morcegos mudou em resultado das alterações climáticas pode ser um passo importante na identificação da origem primeira do surto da COVID-19”.
Para obter estes resultados, os investigadores criaram um mapa da vegetação do mundo como era há um século, utilizando registos de temperatura, precipitação e nebulosidade. Depois utilizaram informações sobre as necessidades de vegetação das espécies de morcegos de todo o mundo para determinar a distribuição global de cada espécie no início dos anos 1900. A comparação com as distribuições actuais permitiu-lhes verificar como o número de espécies diferentes de morcegos mudou em todo o mundo ao longo do último século devido às alterações climáticas.
“À medida que as alterações climáticas alteraram os habitats, as espécies deixaram algumas áreas e mudaram-se para outras, levando consigo os seus vírus. Isto não só alterou as regiões onde os vírus estão presentes, mas muito provavelmente permitiu novas interacções entre animais e vírus, causando a transmissão e evolução de vírus mais nocivos”, elucida Beyer.
A população mundial de morcegos transporta cerca de 3 mil tipos diferentes de coronavírus, com cada espécie de morcego a abrigar uma média de 2,7 coronavírus, a maioria sem mostrar quaisquer sintomas. Um aumento do número de espécies de morcegos numa determinada região, impulsionado pelas alterações climáticas, pode aumentar a probabilidade de um coronavírus prejudicial para os seres humanos estar presente, ser transmitido, ou aí evoluir.
A maioria dos coronavírus transportados por morcegos não pode passar directamente para o ser humano. Mas é muito provável que vários coronavírus, conhecidos por infectar humanos, tenham tido origem em morcegos, incluindo três que podem causar fatalidades humanas: Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS) CoV, e Síndrome Respiratória Aguda (SARS) CoV-1 e CoV-2.
A região identificada pelo estudo como um ponto charneira para um aumento da riqueza de espécies de morcegos, devido às alterações climática, é também o lar dos pangolins, que a comunidade científica sugere terem actuado como hospedeiros intermediários do SARS-CoV-2. É provável que o vírus tenha saltado dos morcegos para estes animais, que foram depois vendidos num mercado de vida selvagem em Wuhan, onde ocorreu o surto humano inicial, tal quanto se sabe até hoje.
Os investigadores referem estudos anteriores que instam os decisores políticos a reconhecer o papel das alterações climáticas nos surtos de doenças virais, e a abordar as alterações climáticas como parte dos programas de recuperação económica da COVID-19.
“A pandemia da COVID-19 causou tremendos danos sociais e económicos. Os governos devem aproveitar a oportunidade para reduzir os riscos sanitários das doenças infecciosas, tomando medidas decisivas para mitigar as alterações climáticas”, refere a Professora Andrea Manica, do Departamento de Zoologia da Universidade de Cambridge, que também esteve envolvida no estudo.
“O facto de as alterações climáticas poderem acelerar a transmissão de agentes patogénicos da vida selvagem aos seres humanos deve ser um alerta urgente para reduzir as emissões globais”, acrescenta o Professor Camilo Mora da Universidade do Havai em Manoa, que iniciou o projecto.
Os investigadores sublinham a necessidade de limitar a expansão de áreas urbanas, terrenos agrícolas e zonas de caça em habitats naturais para reduzir o contacto entre humanos e animais portadores de doenças.
O estudo mostra ainda que, ao longo do último século, as alterações climáticas também impulsionaram o aumento do número de espécies de morcegos em regiões da África Central, e manchas dispersas na América Central e do Sul.
*António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência, entre os quais se destacam “Íris Científica” (Mar da Palavra, 2005 – Plano Nacional de Leitura),”Caminhos de Ciência” com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011) e “Diálogos com Ciência” (Ed. Trinta por um Linha, 2019 – Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular “Ciência às Seis”, no Rómulo Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.