“No século XVI a gesta dos portugueses tornou-se epopeia pela pena de Camões… a transposição da História para a epopeia deu-lhe porém, a força do mito, não só para gente pouco instruída…”
José Mattoso, in “A identidade Nacional”, 1998
A expansão marítima portuguesa, ou “descobrimentos” na perspectiva europeia, foi obra de muitas gerações, consequência de necessidades nacionais e aspirações sociais: posicionamento ultraperiférico de Portugal, limites oceânico e terrestre com Castela, carências alimentares sobretudo de cereais, rotas comerciais no Mediterrâneo dominadas pelos otomanos, influência dos mercadores nas maiores cidades, Lisboa e Porto, ideais culturais do Renascimento,…
Na História da expansão marítima de quatrocentos o Algarve surge ligado à figura do Infante D. Henrique, tema sensível por razões educativas e de herança mitológica. Na origem dessa construção idealizada estarão as crónicas de Gomes Eanes de Zurara, autor dos panegíricos henriquinos, protegido do Infante e por este feito comendador da Ordem de Cristo.
A descrição mitológica e mesmo hagiográfica, fixou-se no imaginário colectivo, reproduzida pelas elites políticas, religiosas e aristocráticas pós-Alfarrobeira (1449), mais tarde exaltada pelo nacionalismo romântico do século XIX e pelo Estado Novo. O auge propagandístico ocorreu em 1894 e 1960 durante as “comemorações henriquinas”, com centenas de topónimos, estátuas,…
Da “Ínclita Geração” destacaram-se duas figuras relevantes, o rei D. Duarte, autor do “Leal Conselheiro” sobre ética e moral e o Infante D. Pedro “das Sete Partidas”, regente uma década (1439-1448) na menoridade de Afonso V, príncipe viajado, reconhecido nas cortes europeias, dominando idiomas, tradutor de clássicos da Antiguidade, que escreveu o “Livro da Virtuosa Benfeitoria” sobre a boa governação, marco na expressão escrita da língua portuguesa.
Na “Carta de Bruges” (1426) dirigida ao rei D. Duarte seu irmão, aconselha o comércio atlântico evitando guerras e ocupações territoriais, contudo a aristocracia feudal e o Infante D. Henrique pugnavam pela “guerra santa” no Norte de África que lhes traria títulos e benefícios.
O Infante D. Henrique, terceiro na sucessão, pressionou D. Duarte a autorizar-lhe o comando do ataque a Tanger, contra a vontade dos irmãos D. Pedro, Duque de Coimbra e D. João, Mestre de Santiago. A expedição foi um desastre, cercado o Infante negociou a devolução de Ceuta sem ter poderes para tal, deixando refém o irmão mais novo D. Fernando que morreu em Fez.
Ao regressar, sob duras críticas, afastou-se da Corte e foi viver para o Algarve, estabelecendo-se na zona de Lagos. É o início da lenda, acompanhada por factos reais…
O regente D. Pedro realizou actos de sábia governação, como as “Ordenações Afonsinas”, concedendo ao irmão a administração da Ordem de Cristo, percentagem nos negócios ultramarinos. O Infante enriqueceu e fez de Lagos (1444) entreposto esclavagista.
No confronto entre antagonismos, com D. Afonso V ainda menor, o regente foi alvo de intrigas da nobreza feudal conduzidas pelo bastardo D. Afonso, feito Duque de Bragança pelo próprio D. Pedro. Este foi assassinado em Alfarrobeira (1448), o seu relevante papel apagado da História da expansão marítima portuguesa, diminuído o valor da sua governação.
O “Príncipe Perfeito”, D. João II, neto e admirador de D. Pedro, seguiu-lhe as ideias, negociou a paz com Castela e o Tratado de Tordesilhas, impulsionou as viagens para o hemisfério sul. Apesar do brilhante reinado, D. João II morreu só e abandonado em Alvor. Ao Infante foram atribuídos os méritos da expansão, dela ausentes vários reis, cidades, cientistas, milhares de marinheiros,…
D. Henrique viveu rodeado de uma elite científica e criou a “escola náutica” de Sagres? Nunca tal foi provado nem referido no seu testamento. Duarte Leite (1864-1950), historiador e diplomata, mostrou que o inglês Samuel Purchas foi no século XVII o criador desse mito.
Intelectuais do século XIX, sem o domínio dos métodos da História, inspirados pelo nacionalismo romântico escreveram biografias romanceadas. Na segunda metade do século XX investigadores como A. J. Saraiva, Luís Albuquerque, Veiga Simões, Magalhães Godinho e outros, procederam a uma necessária e fundamentada revisão histórica, que continua hoje com novos contributos.
E o Algarve? António Rosa Mendes pugnou por uma unidade científica especializada na História do Algarve, culturalmente dela carecemos para educação das gerações e valorização da região.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico