Fazia-se um silêncio sepulcral nos corredores do secundário. As salas de aulas estavam vazias. Apenas um muro de lamentações dos habituais cúmplices se erguera à sua volta. A profissão docente estava a morrer, a olhos vistos. E, o caso, de tão estrondoso que era, nada tinha a ver com a nossa inscrição na ordem dos pessimistas inveterados.
As estatísticas daquele presente anunciavam um futuro de intensa morbilidade do corpo docente. Não era cogitação, ou qualquer encenação. Aquele toque a finados desenhava-se como alta probabilidade, provinda do estudo matemático na quantificação da aleatoriedade e incerteza do evento. Os números, feitos informação, não mentiam. O requisito era da entrada inconseguida de 30 mil docentes até ao ano de 2030. De nada valeriam os cômputos ministeriais de propaganda otimista, sem prejuízo dos seus bem-intencionados propósitos governativos.
Perceber-se-ia porquê a origem do colapso daqueles professores sem futuro, de tantos alunos sem presente. Numa linguagem marxiana, dir-se-ia terem sido objeto de uma profunda proletarização, à semelhança de tantos outros grupos socioprofissionais.
Pelos corredores da vida social, o corpo docente do secundário tinha passado pela via sacra do declínio da respeitabilidade e da aura de prestígio social que tivera anos volvidos, mergulhado que estava numa desmesurada e frustrante precariedade.
Havia um luto revoltante, marcado pela ignomínia da sua nomadização, eivada daquele louco saltitar de escola em escola, a cada ano letivo, durante uma catrefada de tempo tão grande que envelhecera viajando sem passaporte para a efetividade.
O seu sonho de estabilidade familiar secara. Faria jus à inultrapassável dificuldade de quem ensinava emser amante confesso da despudorada condição do seu uso como fralda descartável. Tendo, no corpo, o apelido de docente, por exercício do ensino, ainda não tinha aprendido, e menos aceite, ter que levar toda uma vida supliciada por agitados arrendamentos ocasionais de casas, com a insígnia de um alojamento tão transitivo quanto a precariedade do seu contrato de trabalho.
Era brutal aquele aviltamento a que se sujeitava, andando de quarto em quarto, levando de baixo do braço um livro do desassossego, que conduzira a sua formação superior ao seu atafulhamento na volumosa papelada adversa aos seus bons e ingénuos propósitos de ensino, ele que afinal, por paradoxal que parecesse, era tido como mão de obra escassa.
Teria sido tão difícil assim, fazê-lo entrar imediatamente na carreira após a sua formação, com um período experimental sério? Eles, que poderiam ser autênticos bricoleurs pedagógicos, tinham sido enredados em mestrados alinhavados como habilitação profissional para a docência, em universidades de duvidosa acessibilidade territorial, no seio de uma carga horária laboral já por si bem limitadora da sua frequência.
Da duvidosa eficácia pedagógico-didática dessa profissionalização nos resultados do ensino, designadamente no sucesso escolar dos alunos, professores e pais viviam o tormento das poucas evidências empíricas.
Depois, em bom rigor, no seio de tamanhas contradições, tampouco os doutoramentos eram tidos em conta na acessibilidade ao ensino secundário, vá-se lá saber porquê. Um virtual descrédito para as universidades que, a este respeito, tinham ficado inopinadamente silenciosas, no universo dos seus saberes produzidos.
Os sucessivos ministérios da Educação tinham assistido aos resultados de métodos pedagógicos revolucionários e pouco ortodoxos do Clube dos Poetas Mortos, mas, sem qualquer rasgo político, tinham-nos dado como filosofia barata.
Da mediocridade educativa era difícil extrair uma revolução, pequena, muito pequenina que fosse.
Naquela agonia, os remendos políticos teimavam em minimizar os problemas com os costumeiros paliativos dos concursos extraordinários, que enfermavam da lógica que sobrevoava um ninho de cucos, sem irem ao fundo da estrutura. A resignação parecia dar frutos, como se fosse um destino feito fado e não escolha nossa.
Enquanto rolavam debates estéreis e tinham lugar pensamentos tardios, a perder de vista e de paciência, por parte de intelectualidades profundas que reuniam em comissões de estudo, os governantes empalhavam com promessas vazias.
Não parece aceitável que, em 50 anos de democracia, ainda não tenhamos tido tempo suficiente para perceber que as lutas dos professores, embora não constituíam propriamente um dado microcósmico no ensino, integram uma problemática bem mais extensa e profunda, conexa com a luta de todos aqueles que rejeitam o atual cenário de mediocridade do ensino, como um panorama devastador para futuro do país.
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