Têm caído em desuso as obras em que dois ou mais conversadores versam um tema científico, debatem filosofia, ciência ou religião. Um advogado e um gestor propuseram-se a escrever um livro em conjunto sobre negociação, tema nem sempre encarado como problemática sociocultural com inúmeras incidências. “À Conversa Sobre Negociação, Um Diálogo Sobre a Arte Negocial ao Longo da História”, por José Miguel Júdice e Pedro Fontes Falcão, Publicações Dom Quixote, 2018, é um produto talentoso, destinado a multiusos e que deita para trás das costas os velhos preconceitos de que negociar é um assunto só de negócios (de correeiros, banqueiros, advogados, comerciantes de secos e molhados e correlativos). Em suma, um livro indispensável para se entender que sem se saber negociar não se vai a parte nenhuma.
Uma conversa divertida e arrojada, começar no Condado Portucalense e acabar na Geringonça e em Trump pode ser trilho minado, pôr os dois conversadores ufanos e doutorais, a fazer uso dos seus misteres para arrecadar futuras mais-valias. Puro engano, conversam animadamente e ajudam os que estão de fora. O elenco das conversas é promissor: como negociar com regras e tirar proveito para ambas as partes, seja coruja ou raposa, o negociador sabe que tem tudo a perder se pretende a humilhação do outro; para negociar proveitosamente é preciso conhecer a cultura do outro, a questão que se pretende acordar ou contratar. E nisto andam os dois conversadores falando de D. Teresa, de Afonso Henriques, do Rei de Leão e Castela, de Inês de Castro, da ínclita geração e até da independência do Brasil, e assim se aponta para a importância de preparar a negociação, de se cuidar de situações em que não se consegue negociar, de se prever que o assunto do negócio tem um prazo de vida ou que é sujeito a transformações. Quanto à gestão de interesses, a negociar ganhando tempo, foram felizes escolhendo o comportamento político de Salazar ou socorrendo-se de Américo Amorim como alguém que sabia primorosamente comprar e vender. Em dado passo, diz Júdice: “O bom negociador é o que está disposto a perder ou ganhar, disposto a entrar e a sair do mercado, e não aquele que tem um preconceito adequado a um objetivo que meteu na cabeça quando era pequenino e quer alcançar quando for grande”. Ao que contrapõe Fontes Falcão: “Numa negociação é fulcral percebermos qual é o nosso interesse. Esse interesse pode refletir aquilo que nos dá prazer, o que queremos deixar no mundo, etc. Tenho de ter claros os meus interesses, que são o mais importante na minha negociação. Aliás, a análise dos interesses dos outros, mas também perceber quais são os meus interesses reais, às vezes falha no contexto do trabalho de preparar uma negociação”.
Põe-se em cima da mesa o poder da informação nas negociações, a oferta e a contraoferta, a dança negocial, o papel da persuasão. E o fio da História passa para a negociação com a Troika, como agiram os líderes políticos portugueses nesse momento cataclísmico e temos depois a Geringonça mostrada como arte de bem negociar à beira do abismo. A conversa entre advogado e gestor está ao rubro, sente-se na escrita o prazer que vai naquele debate de ideias, fala-se no peso da coerência e da flexibilidade, e até a música tem o seu momento para entrar na conversa:
“A negociação não é um concerto de violino a solo, é uma orquestra em que tudo tem de tocar. Se tocar apenas o violino ou o contrabaixo, isso não é música; a música é o conjunto.
A negociação é música, e muitas vezes negoceia-se com uma prima donna, que é um solista, sem que se destaque mais ninguém, e geralmente o solista é vaidoso e orgulhoso. Muitas vezes os negociadores de primeira linha estragam as negociações, por não serem capazes de ceder, pelo que é preciso que alguém esteja lá quando essa necessidade surge.”
A conversa prossegue acalorada, estamos agora na geopolítica internacional, a figura central é Donald Trump, discute-se o que move o presidente dos EUA, quais os seus objetivos de Estado e os objetivos pessoais; e a fratura que, propositada ou incidentalmente, ele pretende introduzir daquilo que nós convencionámos ser bom para a segurança e concórdia entre Estados, a Paz de Vestefália. Fala-se das potências mundiais e das regionais, e do hipotético novo equilíbrio de poderes de que Trump se pretende ser criador, e até mesmo os riscos que corremos em mudanças bruscas no eixo do poder negocial.
Na hora de balanço, os dois conversadores estão de acordo: negociar deve ser uma operação vantajosa, devemos estar atentos à complexidade dos processos e invocam-se as negociações multilaterais, sempre delicadas e a exigir uma informação cultural afinadíssima. Negociar é uma competência determinante no mundo contemporâneo, afeta indivíduos, empresas, instituições, Estados, a comunidade internacional, logo no seu contexto geopolítico, é bom estudá-la em todas as suas dimensões, a civilização e a cultura têm tudo a ganhar com boas práticas da arte negocial.
Uma leitura estimulante e bem engenhosa, assim se comprova que negociar bem tem requisitos indispensáveis de educação, cultura, seja nos negócios, seja na política.