Um casal de angolanos que casou em Luanda em 2020 viu o pedido de divórcio bloqueado pelos tribunais portugueses porque o casamento não estava inscrito no Registo Civil nacional. A questão levantou dúvidas sobre a necessidade de transcrição de atos de estado civil celebrados fora do país para produzirem efeitos legais em Portugal.
De acordo com o acórdão de 16 de outubro de 2025 (Proc. n.º 901/25.3T8STR.E1) da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, o casamento de dois cidadãos estrangeiros celebrado no estrangeiro só é atendível em Portugal se estiver inscrito no Registo Civil português. Sem essa inscrição, o casamento não pode ser invocado em tribunal, o que impede a instauração e o prosseguimento de uma ação de divórcio com base nesse vínculo.
Registo civil estrangeiro e eficácia legal
O Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Família e Menores, indeferiu liminarmente a ação de divórcio intentada pelo casal. Segundo a decisão de 1.ª instância, o casamento celebrado no estrangeiro não podia ser considerado para efeitos de direito português porque não estava transcrito no Registo Civil nacional, o que tornava impossível o prosseguimento da ação.
Em causa está a aplicação do artigo 1669.º do Código Civil, que estabelece que um casamento sujeito a registo não pode ser invocado pelos cônjuges, seus herdeiros ou terceiros enquanto não for lavrado o correspondente registo. Em termos processuais, o tribunal fundamentou o indeferimento liminar na existência de uma excepção dilatória insuprível, nos termos do artigo 590.º do Código de Processo Civil, que permite recusar logo à partida a petição inicial quando falte um pressuposto essencial à apreciação do pedido.
Casal recorre para o Tribunal da Relação de Évora
A autora recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, defendendo que, tratando‑se de dois cidadãos estrangeiros, a transcrição do casamento em Portugal não seria obrigatória e que o ordenamento jurídico português admite a instauração de ações de divórcio relativas a casamentos celebrados no estrangeiro. No recurso foi ainda invocado o regime do Código do Registo Civil, segundo o qual os atos de estado civil lavrados no estrangeiro apenas ingressam no registo português quando exista interesse atendível na transcrição, sendo o desejo de obter o divórcio em Portugal apresentado como esse interesse legítimo.
A Relação de Évora, porém, considerou que a falta de inscrição do casamento no Registo Civil português é um obstáculo inultrapassável: enquanto o casamento não estiver transcrito, não é juridicamente atendível em Portugal, pelo que não pode servir de base a uma ação de divórcio nos tribunais portugueses. Por isso, o tribunal de recurso julgou improcedente a apelação e confirmou o indeferimento liminar decidido em Santarém.
Jurisprudência e interpretação legal
O acórdão agora proferido enquadra‑se numa linha de jurisprudência que distingue duas dimensões: por um lado, a possibilidade de os tribunais portugueses apreciarem pedidos de divórcio relativos a casamentos celebrados no estrangeiro; por outro, a necessidade de garantir que esses casamentos estão devidamente refletidos no registo civil nacional para produzirem efeitos em Portugal.
Em decisões anteriores, a Relação de Évora já tinha admitido que o simples facto de o casamento ter sido celebrado fora de Portugal não impede, por si só, a apreciação de uma ação de divórcio. Em paralelo, outros acórdãos sublinham que, para efeitos de registo e para que a decisão de divórcio possa ser averbada ao assento de casamento, é indispensável que o casamento estrangeiro esteja previamente transcrito no registo civil português, designadamente quando estejam em causa efeitos perante terceiros, partilhas ou futuras revisões e confirmações de decisões estrangeiras.
O Código do Registo Civil prevê, por um lado, a obrigatoriedade de registo dos casamentos sujeitos a registo e, por outro, que os atos de registo civil lavrados no estrangeiro apenas ingressam no sistema registral português quando exista legítimo interesse na transcrição. No caso concreto, a Relação considerou que esse interesse não basta, por si só, para ultrapassar a exigência substantiva de que o casamento esteja efetivamente inscrito antes de ser invocado em tribunal.
Implicações práticas para cidadãos estrangeiros
Na prática, isto significa que, antes de intentar uma ação de divórcio em Portugal, os cônjuges devem promover a inscrição do casamento celebrado no estrangeiro junto de uma conservatória do registo civil, demonstrando um interesse atendível nessa transcrição. Só depois de o casamento constar dos registos portugueses é que a ação de divórcio poderá ser apreciada e a eventual decisão de dissolução do vínculo será susceptível de ser averbada ao respectivo assento.
O acórdão lembra ainda que instrumentos internacionais, como o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Portugal e Angola, asseguram a cooperação entre ordens jurídicas e facilitam o reconhecimento de decisões judiciais, mas não dispensam o cumprimento dos requisitos internos de registo civil previstos na lei portuguesa.
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