As grandes transições – climática, energética, ecológica, agroalimentar, digital, laboral, demográfica, migratória, sociocultural – vão marcar profundamente as próximas décadas até 2050, o ano da neutralidade carbónica. Entretanto, a guerra da Rússia contra a Ucrânia, as sanções e o impacto da crise energética sobre as cadeias de valor vieram perturbar fortemente a estabilidade de preços das economias no mundo ocidental e pôr em causa as metas definidas para a neutralidade carbónica e tanto mais quanto este impacto é muito assimétrico consoante os países.
Estamos no final do ano de 2022 e num momento crucial para o futuro da Europa e da União Europeia, a crer na carta que a presidente da Comissão Europeia Ursula Van der Leyen dirigiu aos chefes de Estado e de Governo no passado dia 14 de dezembro, de resto, em linha com o que já tinha expressado no seu discurso sobre o estado da União proferido em Strasbourg no dia 14 de setembro. Nessa carta a presidente da Comissão mostra, por um lado, preocupação com o arrastamento da guerra e novas vagas de refugiados ucranianos e, por outro, com os impactos protecionistas da lei norte-americana de redução da inflação (IRA) que tem efeitos perversos sobre a competitividade da economia europeia. E perante estas várias ameaças ela anuncia um plano em quatro pontos: rever as regras europeias em matéria de ajudas de Estado (1), negociar com a administração americana os aspetos mais perniciosos da lei anti-inflação (2), promover mais investimento público europeu para realizar a transição energética e criar um fundo soberano para uma solução mais estrutural (3), promover o uso mais intensivo de energias renováveis e a reforma dos mercados da eletricidade (4).
Feita esta introdução, convenhamos que, fazer a transição justa entre a descarbonização e a reindustrialização em pleno teatro de guerra europeu e com as peças do puzzle todas em movimento, não é uma tarefa nada fácil. Vejamos, então, como se apresenta a agenda europeia neste final de ano 2022.
Em primeiro lugar, no final do ano e em jeito de balanço, importa alinhar os fatores mais críticos de regulação internacional na atual conjuntura: a crise profunda do multilateralismo e do internacionalismo liberal (1), o cerco da geopolítica à geoeconomia (2), os impactos dos acidentes climatéricos e as crises humanitárias (3), os fluxos de refugiados e a pressão sobre as políticas domésticas (4), a emergência dos grandes conglomerados Big Tech e Big Money, uma crescente extraterritorialidade e a crise das soberanias nacionais (5), a disrupção das cadeias de valor globalizadas (6), a fragmentação dos mercados de trabalho e a erosão dos direitos sociais (7), a crise grave das modalidades de cooperação e ajuda internacionais (8), as guerras cibernéticas e as crises securitárias (9), a eclosão do protecionismo, nacionalismo e populismo e a crise dos territórios como variáveis endógenas da globalização (10).
Em segundo lugar, as grandes transições estão em plena operação e a gerar externalidades, positivas e negativas, em todas as direções. A transição climática, por virtude do aquecimento global, uma nova era que alguns cientistas designam de Antropoceno. A transição energética em direção a um novo mix de energias renováveis e limpas. A transição ecológica e agroalimentar em consequência de uma adaptação dos seres vivos, plantas e animais, às alterações climáticas e a uma nova sazonalidade. A transição digital por via da desmaterialização de processos e procedimentos em praticamente todas as áreas. A transição demográfica por via de alterações no crescimento natural e nas migrações da grande aldeia global em que habitamos. Finalmente, a transição socio-laboral e sociocultural como expressão de um novo padrão de comportamento dos seres humanos confrontados com todas estas alterações. O que não sabemos, ao certo, é se estas grandes transições convergem ou divergem e, em consequência, qual a dose de mitigação, adaptação e transformação que deve ser recomendada e aplicada.
Em terceiro lugar, a principal preocupação está focada no aquecimento global e, portanto, na descarbonização da economia com metas para 2030 e 2050, o ano da suposta neutralidade carbónica. Esta descarbonização será acelerada pela transição digital e acontecerá em todos os setores de atividade: no sistema de produção elétrica, no parque de edifícios, no sistema de transporte, nos processos industriais, na economia dos resíduos, nas práticas agrícolas sustentáveis, no reforço da capacidade de sequestro da floresta nacional, na economia azul, na descarbonização da administração pública e das cidades. As redes inteligentes tomarão conta destes setores e a desmaterialização de processos e procedimentos permitirá poupar muita energia.
Em quarto lugar, a descarbonização da economia, ao alterar os custos e benefícios de contexto e a posição relativa dos agentes económicos nas cadeias de valor respetivas, muda, também, a sua posição relativa no que diz respeito às regras de concorrência, em particular, o regime das ajudas de Estado. Estas alterações devem, por isso, ser balizadas pela política regulatória da União Europeia sob pena de se transformarem em fatores ativos de violação das regras de concorrência e prejudicarem o próprio processo de descarbonização da economia em curso. Os pagamentos por serviços de ecossistema, peça central da política de descarbonização e coesão territorial, deverão ser considerados efeitos externos positivos e como tal ser aceites pela política regulatória. Um outro exemplo, menos pacífico, é a aplicação de uma taxa de carbono sobre as importações, sobretudo aquelas com uma grande pegada ecológica e com origem em operações de desflorestação.
Em quinto lugar, a descarbonização da economia faz apelo uma nova estrutura de custos e benefícios de contexto e se não fizermos de forma proativa a pedagogia desta nova estrutura de custos e benefícios podemos estar a criar uma nova geração de free raiders e um elevado risco moral em todo o processo de descarbonização. Se a nova estrutura de custos e benefícios de contexto não for acompanhada de um sistema de incentivos apropriado e de uma nova estrutura de despesa fiscal, ninguém poderá garantir o sucesso deste grande empreendimento. Com efeito, a descarbonização da economia implica uma nova geração de investimentos públicos no território, sobretudo, a sua cobertura digital adequada para processar um grande volume de dados. A arritmia da inovação e do investimento em tantos setores que deviam estar conectados para produzir bons resultados ocasionará, inevitavelmente, um efeito de dissipação do próprio processo de descarbonização que é preciso levar em linha de conta desde o primeiro momento.
Em sexto lugar, importa lembrar que é preciso cuidar de uma transição justa, isto é, a descarbonização da economia induz alterações profundas na estrutura empresarial, na repartição do valor das fileiras económicas e nos mercados de emprego nacionais e regionais. É preciso cuidar da transição justa, dos efeitos de aglomeração territorial, de novas assimetrias territoriais, da concentração empresarial e dos efeitos de exclusão social em consequência da neutralidade carbónica e dos planos de energia e clima. Se não cuidarmos do equilíbrio destes vários efeitos externos e não tivermos um nível de ataque para os programar e reparar a tempo e horas, teremos, seguramente, muitos problemas graves pela frente.
Em sétimo lugar, a descarbonização e a nova matriz energética da economia, na sua aceção mais ampla, é um complexo de políticas e medidas de política que se desenrola a vários níveis. Do lado da oferta ela contempla a produção e o armazenamento de energia de fontes renováveis, a distribuição grossista e a comercialização a retalho, a produção e distribuição descentralizada das comunidades locais de energia, o controlo e regulação da repartição do rendimento gerado no interior das novas cadeias de valor, as boas práticas de benchmarking em matéria de sustentabilidade e governança (metodologia ESG), uma política de transição justa de coesão territorial e uma adequada política de incentivos em matéria de economia circular. Do lado da procura, falamos de eficiência e poupança de recursos e consumos em todos os setores, de uma melhor organização das cidades, de uma correta política de transição justa no que diz respeito ao modo como usamos os recursos do território – solos, água, ventos, exposição solar, cobertura florestal, riquezas minerais. Além disso, o equilíbrio entre emissões e captura de carbono depende, como sabemos, de uma boa qualidade dos solos e uma boa cobertura florestal.
Em oitavo lugar, o instável equilíbrio entre o vanguardismo ambiental e o protecionismo comercial na União Europeia que, de alguma forma, foi introduzido pelo acordo provisório do passado dia 13 de dezembro em Bruxelas obtido entre o Conselho e o Parlamento a propósito do chamado mecanismo de ajuste de carbono nas fronteiras, na sigla inglesa CBAM; trata-se de sancionar as importações com uma taxa de carbono devido à sua elevada pegada energética, em particular, produtos obtidos com altas emissões de GEE e produtos obtidos à custa do desmatamento florestal; a data prevista para entrar em vigor é o mês de outubro 2023, mas até lá as instituições europeias terão de tomar uma decisão definitiva.
Em nono lugar, o arrastamento da guerra entre a Rússia e a Ucrânia obrigará a União Europeia e a Europa no seu conjunto a reverem toda a sua arquitetura de defesa e segurança, criando, por essa via, mais uma assimetria potencial entre territórios nacionais no que diz respeito ao modo de financiamento dessa arquitetura e a relocalização das indústrias de defesa europeias; também aqui se deverão aplicar os princípios de uma transição justa em estreita cooperação com a Aliança Atlântica.
Finalmente, para promover esta dupla transição justa feita de descarbonização e reindustrialização, a União Europeia terá de realizar uma verdadeira revolução na sua arquitetura político-financeira: monetização (BCE), tributação (impostos verdes e digitais), mutualização (mecanismo de recuperação e resiliência), estabilização (mecanismo europeu de estabilização) e, ainda, como vimos antes, uma solução estrutural para o financiamento da transição energética através de um fundo soberano, assim como uma revisão profunda da política de concorrência e das ajudas de Estado visando reforçar as bases industriais da economia verde do futuro.
Notas Finais
No plano doméstico, as grandes transições vão marcar profundamente as próximas décadas até 2050, o ano da neutralidade carbónica. Já aí estão o roteiro da neutralidade carbónica 2050 (RNC), o plano nacional da energia e clima 2030 (PNEC) e agora, também, o regime jurídico do sistema elétrico nacional (DL nº15/2022 de 14 de janeiro).
Os desafios lançados pelo RNC 2050 e o PNEC 2030, mas, também, pelo Programa Nacional de Investimentos (PNI), o PRR 2026 e o Programa Portugal 2030, só terão valido a pena se tivermos promovido a passagem da lei do mais forte para a lei do mais justo. Diz a primeira, privatize-se o benefício e socialize-se o prejuízo. Diz a segunda, socializem-se os serviços ambientais prestados por via de remuneração, privatizem-se os prejuízos causados por via de sanção. Esta é a grande transição paradigmática contida na descarbonização da economia e significa que é preciso superar a visão industrialista das políticas públicas, homogeneizante e normalizadora, geralmente dirigida a um destinatário abstrato e universal.
Pela importância de que se revestem na reorganização da economia, pelo volume de investimentos que mobilizam na próxima década, pelo lugar central que irão ocupar nas políticas públicas do Portugal 2030, pelo impacto enorme que terão nos territórios, estamos perante uma transformação profunda da economia e da sociedade portuguesas. O assunto é sério e não pode ser tratado com ligeireza, embora todos saibamos que num horizonte tão largo de tempo tudo pode acontecer, mesmo os maiores imponderáveis.
Em jeito de síntese, um balanço final de argumentos. Complementaridade entre recursos do território (sol, água, vento, biomassa, mar), maior equilíbrio entre emissões e sequestro de carbono, custos de produção renovável mais competitivos e atração de indústrias eletro-intensivas, maior participação em cadeias de valor europeias e interligação às redes europeias, maior capilaridade territorial dos centros electroprodutores, transição justa e redução dos custos de contexto, produção descentralizada de energia, eficiência e redução de consumos, prossecução da estratégia nacional de hidrogénio, uma nova estrutura de despesa fiscal e financeira para a transição energética. Depois de tudo o que fica dito, estamos perante uma transformação tão complexa e profunda que todos os territórios estão obrigados a encontrar rapidamente o seu modus operandi e a cadência própria da sua transformação estrutural e operacional.
Artigo publicado no Observador.
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