No passado dia 14 de junho escrevi no Público um artigo com o título Ucrânia, o risco de uma nova cortina de ferro. Infelizmente, o tempo confirmou as minhas piores expetativas. Nos últimos dias assistimos ao espetáculo da anexação de quatro territórios ucranianos na federação russa e, claramente, a uma escalada da guerra (a Ucrânia chegou mesmo a afirmar que irá pedir a adesão à NATO), enquanto no terreno a destruição, as mortes e os ataques terroristas continuam diariamente.
O risco de a guerra na Ucrânia ficar congelada, e cada vez mais uma guerra híbrida de intensidade variável, durante uma parte substancial desta década, é um cenário que não pode ser afastado. Se assim acontecer, a União Europeia não sairá incólume deste grande evento geopolítico e nessa eventualidade muitas interrogações de grande alcance se levantam. Acresce que, o grau de verosimilhança deste cenário de guerra congelada tem uma probabilidade elevada e merece, por isso, que sobre ele façamos algumas breves reflexões.
Em primeiro lugar, uma guerra congelada obrigaria a prolongar e a reforçar as sanções aplicáveis à Rússia e, em consequência, os seus efeitos assimétricos de ricochete sobre os Estados membros da União Europeia teriam repercussões muito sérias sobre a política doméstica e europeia, alimentando o sentimento antieuropeu e ameaçando a unidade europeia.
Em segundo lugar, a política europeia relativa às Grandes Transições previstas para esta década – climática, energética, ecológica, digital, migratória, demográfica, cibernética – não teria as mesmas condições políticas para prosseguir e poderia, mesmo, colidir frontalmente com os custos derivados do arrastamento da guerra e colocar em causa o esforço de recuperação e resiliência nas áreas mais críticas como as alterações climáticas, a transição energética e o pacto ecológico.
Em terceiro lugar, uma guerra congelada poderia deslocar uma parte substancial do eleitorado europeu (já em movimento nas últimas eleições na Suécia e em Itália) para as direitas mais nacionalistas e populistas e fazer crescer o sentimento antieuropeu e o número de Estados relutantes e, em consequência, o risco de colisão desses Estados mais relutantes com as instituições da União Europeia, acusadas de centralismo e a fonte de todos os males da Europa.
Em quarto lugar, uma guerra congelada e prolongada agravaria as consequências, já hoje bem visíveis, das disfunções que afetam as principais cadeias logísticas e de produção global, o que conduziria a uma globalização de baixa intensidade e, portanto, a um arrefecimento das relações económicas internacionais com sérias repercussões sobre o apoio aos países menos desenvolvidos.
Em quinto lugar, uma guerra congelada e prolongada alteraria seriamente as condições de realização do programa de recuperação e resiliência (PRR) e dos restantes programas europeus, bem como dos investimentos neles previstos, na medida em que os mercados de capitais, o investimento direto estrangeiro e a revisão dos orçamentos (inflação) seriam diretamente afetados pela incerteza geopolítica e geoestratégica reinante.
Em sexto lugar, uma guerra congelada e prolongada faria crescer não só a instabilidade política no interior da sociedade russa (como já se verifica neste momento com a mobilização parcial e as fugas de cidadãos russos), como no interior dos países da sua área de influência, descobrindo, por essa via, alguns conflitos latentes entre vizinhos (como também já acontece neste momento), que espreitam uma oportunidade para explodir à luz do dia.
Em sétimo lugar, numa guerra congelada e prolongada, com muitos efeitos e vítimas colaterais, o papel da China ainda é uma incógnita, e pode ser muito oportunístico, em especial, no realinhamento da ordem internacional e nas relações com a Federação Russa, sendo certo que para manter o crescimento da economia chinesa é fundamental conservar as boas relações com o mundo ocidental nos domínios do comércio e investimento.
Em oitavo lugar, numa guerra congelada e prolongada, uma das vítimas colaterais são as instituições internacionais e, em consequência, todos aqueles países não desenvolvidos que precisam da ajuda direta das organizações multilaterais, enquanto, ao mesmo tempo, eclodem mais conflitos regionais, se reforçam os movimentos terroristas e aumenta o número de Estados falhados.
Em nono lugar, uma guerra congelada e prolongada faria crescer não apenas os custos diretos com a defesa europeia, mas, também, os custos, diretos e indiretos, não apenas com o controlo dos movimentos migratórios e erráticos de população, mas, sobretudo, com os custos crescentes da guerra híbrida, o que recoloca a política externa e de segurança comum da União Europeia num patamar superior de grande complexidade e exigência, e isto numa conjuntura onde prevalece cada vez mais o sentimento antieuropeu.
Em decimo lugar, uma guerra congelada e prolongada ao longo da década colocaria uma pressão muito elevada sobre as relações da União Europeia com os Estados que são candidatos à adesão europeia, em especial, os Estados balcânicos e a própria Ucrânia, todos eles à espera de programas e ajudas de pré-adesão e, no caso da Ucrânia, de um grande programa de reconstrução e desenvolvimento.
Notas Finais
E porque é que este cenário de guerra congelada e híbrida tem um grau de verosimilhança elevado? Porque ninguém quer ou está em condições de aceitar perder esta guerra, seja a Federação Russa, a Ucrânia ou o mundo ocidental, porque a anexação da Crimeia e da região do Donbass e a chantagem nuclear que a acompanha tornam praticamente impossível uma solução pacifica e diplomática, pelo menos com os atuais protagonistas, porque ela, a guerra congelada, é ou pode ser, apesar de tudo, compatível com acordos diplomáticos transitórios e provisórios patrocinados por terceiros que reduzam a intensidade dos armas e dos combates e, porque, paradoxalmente, a continuação de uma guerra de baixa intensidade pode salvar a face dos protagonistas principais, pelo menos enquanto permanecerem no poder. E, tudo isto, porque todos parecem acreditar que o prolongamento da guerra terá efeitos devastadores sobre o seu inimigo principal, seja o fim do atual regime autocrático russo, a destruição total da Ucrânia ou a fragmentação e a balcanização da União Europeia e essa circunstância, que não poupa ninguém, talvez seja suficiente para permitir um compasso de espera entre as partes e, mesmo, alguma solução de paz transitória e precária.
No final, uma guerra congelada, e cada vez mais uma guerra híbrida, poderá ainda oferecer-nos o espetáculo derradeiro dos muros da vigilância e da vergonha. em redor e ao longo dos territórios anexados, muros digitalizados, é evidente, como recomenda a cartilha tecnológica. Uma tragédia anunciada. Esperemos que os cisnes negros cheguem depressa e anunciem a boa nova, só eles poderão inverter o rumo da guerra.
Artigo publicado no jornal Público.
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