A governação europeia não será, decididamente, uma tarefa fácil durante esta década. Os fatores de perturbação e instabilidade estão todos aí: os acidentes climatéricos severos, os fluxos migratórios erráticos, a guerra Ucrânia-Rússia e os efeitos ricochete das sanções, o arrefecimento das relações com a China, os problemas relativos à transição energética e seu impacto sobre os preços, os graves problemas relativos à segurança da margem sul do mediterrâneo, a extrema fragilidade relativa à provisão dos bens públicos globais, os problemas recorrentes com os países dos próximos alargamentos, os problemas do multilateralismo e das agências onusianas, o crescimento do populismo e do autoritarismo nacionalistas no interior da União Europeia.
As agendas e os níveis de governação
Num plano mais analítico podemos dizer que a governação europeia é prosseguida no âmbito de três grandes agendas, global, europeia e nacional.
1. A agenda global e três tópicos essenciais intimamente interligados:
– A geopolítica de proximidade em situação crítica em toda a orla fronteiriça da Europa comunitária,
– A geopolítica mais afastada no que diz respeito às relações com a China e o continente asiático, cada vez mais frias,
– Os factos globais totais, ou seja, tudo o que diz respeito aos acontecimentos fortuitos e os imponderáveis do acaso, como a guerra cibernética, as alterações climáticas, os atos terroristas ou as novas pandemias.
2. A agenda europeia e uma tripla quadratura:
– A quadratura financeira diz respeito a quatro planos analíticos de governação europeia: a monetarização das funções do Banco Central Europeu, a tributação dos novos recursos próprios do orçamento da União, a mutualização da dívida pública conjunta europeia, a estabilização das regras relativas às finanças públicas da União,
– A quadratura eco-digital diz respeito, igualmente, a quatro planos analíticos de governação: a descarbonização via pacto ecológico europeu, a digitalização via plano de
ação digital europeu, a reindustrialização de algumas cadeias de valor europeias, a regulação das ajudas de Estado dos países europeus.
– A quadratura política europeia diz respeito a quatro funções essenciais da governação europeia: a deliberação política por maioria qualificada ou unanimidade, a harmonização dos atos normativos e a direção da política legislativa da União, a coesão social e o debate em redor de um rendimento mínimo garantido, a coesão territorial e a correção dos choques assimétricos provocadas pelo processo de integração.
3. As agendas nacionais e três grandes tópicos fundamentais:
– Reduzir e corrigir os efeitos assimétricos dos programas e políticas promovidos pela União Europeia,
– Reduzir o risco de endurecimento político e instabilidade governativa no interior dos Estados membros da União, em consequência de uma crescente polarização político-partidária,
– Reduzir o risco de balcanização da política europeia e o número de estados relutantes, desde os estados frugais do norte da Europa, ao grupo de Visegrado (Polónia, Eslováquia, Hungria) e aos países do sul da Europa, como reação às sanções da guerra, aos efeitos das negociações sobre os alargamentos e, mesmo, em relação a algumas questões relacionadas com as autonomias regionais.
Europa Federal, tão perto e tão longe
Perante tão elevada contingência, a minha insistência numa união política europeia de natureza federal não resulta de obstinação pessoal, mas, antes, de sinais preocupantes em matéria de regressão do comércio global, crise do multilateralismo, a direção da geopolítica mundial e regional e, mesmo, de regressão ou recessão democrática. A preservação de um bloco europeu politicamente integrado e pacificado é a única solução para um país pequeno como o nosso nesse mundo tão conturbado que nos espera. Por isso, na minha teoria do federalismo cooperativo, partilhado e descentralizado, no cerne da sua relegitimação política, cabe um pacote de bens comuns europeus alinhados com os bens públicos globais, de acordo com o princípio sistémico de que o todo é maior do que a soma das partes.
No plano global, a história e a geografia voltam a estar frente a frente. A qualquer momento pode eclodir um facto grave e precipitar uma crise de consequências
imprevisíveis. Sabemos que sempre foram os fatores externos a determinar os grandes momentos do projeto europeu. Hoje, os bons pretextos abundam: as migrações erráticas, as alterações climáticas, os estados falhados do Médio Oriente e do Norte de Africa, o problema russo-ucraniano, o arrefecimento das relações com a China por causa de Taiwan, as implicações de uma vaga neoprotecionista, a estagflação, o terrorismo internacional, para citar apenas alguns.
Os princípios gerais de um federalismo partilhado, cooperativo e descentralizado, protegem, por um lado, a União e os Estados mais pequenos de uma política de potência ou de um unilateralismo hegemónico e, por outro, de acordo com o princípio de subsidiariedade, reforçam as competências descendentes da autonomia local, regional e inter-regional e, no geral, a cooperação territorial descentralizada. No quadro desta teoria do federalismo cooperativo os bens comuns europeus estão repartidos por três blocos. A carta dos direitos fundamentais e a procuradoria europeia, a preservação do modelo social europeu como referência civilizacional, a coesão territorial e a cobertura dos grandes riscos a nível europeu, constituem o primeiro bloco de bens comuns fundamentais.
Um segundo bloco considera os bens comuns de natureza mais instrumental, a saber, a natureza, dimensão e funções do orçamento da união política, onde se inclui a tributação própria, em seguida, o papel do banco central com as funções de reserva federal e, por último, a criação de um fundo monetário europeu e de um mecanismo de gestão da dívida pública europeia com o duplo objetivo de providenciar maior estabilidade financeira aos Estados membros e mais recursos financeiros à União Europeia junto dos mercados internacionais, numa lógica claramente mais federal.
Finalmente, um terceiro bloco de bens comuns, onde se inclui a política externa e de segurança e a defesa comum, sendo de realçar nesse contexto as relações com a Rússia, o Grande Médio Oriente e o Mediterrâneo e, agora, também, os impactos da nova geopolítica chinesa.
Em síntese, a minha proposta para uma união política europeia de natureza federal, que segue, não obstante, a tradicional política de pequenos passos de tipo comunitário, pode ser alinhada do seguinte modo ao longo da década:
– A criação de uma Nato Europa e de um Conselho de Segurança Europeu,
– A criação de um Senado, a câmara alta do Parlamento, com representação paritária,
– A criação de uma Reserva Federal através do reforço das atribuições do BCE,
– A criação de um Fundo Monetário Europeu, (estabilização e dívida conjunta),
– A revisão do procedimento legislativo com mais maiorias qualificadas,
– A reindustrialização do mercado único por via de uma nova matriz energética,
– A criação de um mecanismo conjunto de proteção e combate contra os grandes riscos,
– A criação de um mecanismo de perequação de correção de choques assimétricos,
– O reforço da coesão territorial por via das euro-regiões, euro-cidades e AECT,
– A meta de 5% do PIB europeu para os recursos próprios da Europa Federal em 2030.
Como facilmente se comprova, uma restrição fundamental que condicionará toda a política europeia no futuro próximo será o financiamento da política externa e de segurança comum que irá exigir, doravante, um volume muito mais substancial de recursos financeiros, se quisermos evitar que os riscos globais não se transformem rapidamente numa tragédia dos comuns. Para tal, teremos de mobilizar em conjunto as contribuições dos Estados membros, os recursos próprios do orçamento da união, os empréstimos financeiros do mercado internacional e os recursos monetários da própria reserva federal. Esta mobilização, por mais progressiva que seja, só é possível no quadro de uma União Política Europeia de características federais e de um sistema de governo com os atributos do federalismo cooperativo.
Nota Finais
Assim, quem, afinal, responde, de modo responsável, perante o futuro do projeto europeu?
Em matéria de prospetiva do projeto europeu estamos necessitados de um conceito de responsabilidade política e pública adequado à atual complexidade da sociedade europeia que, todavia, não nos deixe entrincheirados e à mercê da retórica fácil dos demagogos e dos populistas. A atual situação de distribuição e imputação de responsabilidade é muito do agrado dos agentes políticos que desejam reduzir o perímetro político do projeto europeu, pois assim alargam bastante o seu espaço de ação e manobra.
Esta contingência europeia tem outra consequência muito relevante, qual seja, a impotência das instituições europeias no que diz respeito à efetividade do seu processo de tomada de decisão em matéria de problem-solving. Devido à escassez de soluções de
futuro assistimos a um fracionamento da decisão política europeia, a uma série de decisões modestas e recorrentes sem eficácia real e substancial.
Sem um mínimo de ordem política orientada para o futuro, que o federalismo cooperativo e os bens comuns poderiam garantir, a prospetiva é uma espécie de campo minado, pois estão lá todos os nossos receios e todas as nossas esperanças. Nada é pensado para durar, tudo é pensado para ser consumido, por isso, todos os cenários de futuro estão postos em causa sem um mínimo de discussão séria e consequente.
Mais singelamente, pode haver uma política europeia sem um estado europeu? Esta é a pergunta que os europeus se colocam, pois está no cerne do seu próprio pensamento político. A Europa Federal tanto pode ser, no plano político, um Estado Federal, uma construção e um poder mais verticais, como uma Federação de Estados, uma construção e uma via mais horizontais. Mas também pode ser uma construção mais policêntrica e distribuída, de geometria variável consoante as policy-areas e o grau de maturidade do sistema político da União, com menos governing e mais governance, no quadro de um sistema político de governação multiníveis com todas as características do método federal que, como sabemos, assenta na autonomia, na subsidiariedade e na consociação cooperativa com os sistemas político-administrativos nacionais e regionais.
Aqui chegados, o que fica por saber é se os europeus chegam lá por via da vontade política ou por via do acaso, digamos, de um grande susto ou precipitação. No primeiro caso, a vontade política pode expressar-se de uma só vez, por via constitucional, ou seguindo o método Monnet dos pequenos passos, por exemplo, durante esta década. No segundo caso, espero bem que não sejam os factos exteriores de uma gravidade extrema a determinar o impulso federal ou reformista que lhes falta, uma espécie de álibi para muitas dúvidas sistemáticas e crises de consciência a propósito do projeto europeu. De resto, como todos sabemos, o pensamento político sobre estas matérias está muito condicionado pelas agendas oficiais, as corporações de interesses e as agências de propaganda político-mediática. No pensamento dominante, chama-se a isto a realidade e esta realidade não se conforma com as promessas do federalismo cooperativo e a teoria dos bens comuns. Europa Federal, tão perto e tão longe, eis o dilema do prisioneiro em que estamos envolvidos.
Artigo publicado no jornal Observador.
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