A Europa passará nesta década por grandes transições – climática, energética, ecológica, digital, demográfica, migratória, socio-laboral, geopolítica e securitária – e esta será uma tarefa política e administrativa extraordinariamente exigente, desde logo, para lidar com a situação crítica de alguns Estados membros assoberbados com o volume de divida pública e privada acumulado durante a pandemia, mas, também, com as crises inerentes à gestão dos efeitos contraditórios da agenda global, onde a guerra na Ucrânia e a inflação ocupam lugar de relevo.
Neste contexto, um dos aspetos mais relevantes é mesmo o modo como os impactos, positivos e negativos, destas grandes transições são antecipados, acomodados e tratados por todos os agentes envolvidos nesta grande operação de comprometer e executar cerca de 6 MM de euros por ano durante toda a década em Portugal. Vamos assistir a uma verdadeira revolução nos custos de contexto e nas externalidades da economia e sociedade portuguesas ao longo desta década. Eis alguns desses impactos estruturais:
– A descarbonização implica a transformação da matriz energética,
– A digitalização e automação dos processos industriais implica um grande investimento em inovação empresarial,
– A desintermediação de circuitos comerciais implica a revisão das cadeias de valor,
– A desigualdade de riqueza e rendimento implica uma requalificação dos ativos,
– A descida da carga fiscal implica rever toda a estrutura da despesa pública,
– A desestruturação da despesa fiscal implica rever a estrutura das ajudas de estado,
– As deseconomias externas implicam a revisão da macro condicionalidade europeia,
– A bio economia e a economia circular alteram a provisão dos serviços de ecossistema.
Os principais impactos aqui elencados têm ciclos de vida e horizontes temporais muito diferenciados, um desdobramento muito atribulado e contraproducente e as suas externalidades cruzadas transformam os atos de gestão das medidas de política em operações de uma elevada complexidade que não se compadecem com as estruturas verticais de um estado-administração convencional. Desde logo, o que decorre da agenda global da União Europeia ao longo da década. Senão vejamos:
– Não conhecemos ainda, em todas as suas dimensões, os impactos do Brexit e não sabemos como o efeito Brexit pode aumentar o número de países relutantes a aceitar mais integração europeia.
– Não sabemos como os novos atos normativos europeus sobre serviços digitais irão colidir frontalmente com o gigantismo tecnológico das companhias americanas que subvertem as regras da concorrência e do mercado único; estão em jogo interesses geopolíticos da maior importância, por exemplo, o impacto das redes 5G e, nesse âmbito, as relações com a China que estão longe de estar reguladas e que suscitarão, ainda, muitos equívocos e controvérsia.
– Não sabemos como os problemas de soberania e extraterritorialidade em matéria de evasão, fraude fiscal e proteção dos interesses financeiros da União irão permanecer na agenda política europeia e global.
– Não sabemos como decorrerão os novos realinhamentos comerciais com os EUA da era Biden e o Reino Unido, com a China após o grande acordo de comércio no sudeste asiático e, ainda, com a Rússia após as sanções que alimentarão muitas discussões sobre o neoprotecionismo europeu e a sua pretendida reindustrialização.
– Não sabemos as sequelas do pós-covid e as consequências das alterações climáticas nas próximas pandemias e na saúde pública dos europeus.
– Não sabemos o impacto da guerra e dos fluxos migratórios nas desigualdades sociais globais, a pobreza, os fluxos migratórios, a dependência geopolítica e os estados falhados, um problema que exigirá maior autonomia estratégica e geopolítica e recursos muito mais avultados para a União Europeia.
– Não sabemos o impacto de um novo conceito estratégico de defesa e segurança europeia nas questões geopolíticas de segurança internacional relativas à determinação e delimitação de novas áreas de influência, no momento em que entrámos, claramente, no período pós-ocidental.
Em todos estes casos existe um risco elevado de fatores imponderáveis, choques assimétricos e efeitos de ricochete entre Estados membros de várias regiões europeias. Se a governação multiníveis não for bem-sucedida podem criar-se divisões políticas graves entre Estados membros que tornarão inevitáveis, não apenas o crescimento do sentimento antieuropeu, mas, também, o endurecimento das democracias domésticas e cada vez mais problemática a coabitação entre democracias liberais e democracias iliberais. No quadro da União Europeia e no plano nacional a armadilha dos efeitos de ricochete e dos choques assimétricos é muito mais evidente e a sua gestão uma tarefa verdadeiramente grandiosa. Senão, vejamos:
– Em primeiro lugar, é imprescindível que o crescimento do PIB potencial corresponda, de facto, ao volume de meios envolvidos e que a produtividade dos fatores e o PIB efetivo acompanhem essa evolução que deverá traduzir-se em acréscimos reais de competitividade da economia portuguesa;
– Em segundo lugar, é imprescindível que se verifique uma correlação positiva entre a destruição de empregos e a criação de empregos e que, no final da década, a taxa de emprego seja superior, assim como o valor das remunerações mínimas e médias;
– Em terceiro lugar, é imprescindível uma nova métrica para o semestre europeu e os critérios europeus de condicionalidade financeira, acrescentando-lhe critérios ecológicos e digitais e, bem assim, as recentes orientações (indicadores) do pilar social europeu;
– Em quarto lugar, é imprescindível rever a estrutura do mercado de capitais e os instrumentos de recuperação, aquisição, fusão e concentração de empresas, sob pena de ser praticamente impossível executar tanto investimento, público e privado, por falta, justamente, de uma recapitalização efetiva das PME;
– Em quinto lugar, é imprescindível rever a estrutura da despesa pública e dos benefícios fiscais (despesa fiscal) tendo em vista realizar bem o programa nacional de investimentos (PNI) e a sua articulação eficaz com os investimentos produtivos privados;
– Em sexto lugar, é imprescindível que os grandes investimentos portuários e aeroportuários tenham em conta a coesão do território nacional e que as ligações entre a fachada atlântica e a fachada transfronteiriça ibérica possam desencadear novas cadeias de valor acrescentado para a macrorregião peninsular;
– Em sétimo lugar, é imprescindível rever a estrutura regulatória e concorrencial, nos planos europeu e nacional, de modo a evitar que as grandes transições (a lei do clima e a descarbonização, a transformação digital) não criem efeitos assimétricos graves e novas discriminações, em especial as que decorrem do impacto das “regras ESG” (environment, social, governance) sobre a rentabilidade empresarial;
– Em oitavo lugar, é imprescindível que, em nome dos valores e direitos do pilar social europeu, seja atribuída na conferência sobre o futuro da Europa uma preferência política à Europa das regiões, às redes de cidades, aos agrupamentos europeus de cooperação territorial e às plataformas distribuídas da sociedade colaborativa;
– Em nono lugar, é imprescindível que, no final da década, o país esteja mais rejuvenescido, que a educação, a formação de ativos e a proteção social sejam mais distribuídas e que tenham sido criadas as melhores condições ecológicas e digitais para uma genuína sociedade colaborativa;
– Em décimo lugar, é imprescindível criar uma estrutura de observação operacional que antecipe e apure, em permanência, as entropias, as assimetrias e as disfunções desta grande realização, de tal modo que a sua correção possa ser feita em tempo útil.
Notas Finais
A década de 2030 é decisiva para o futuro da Europa, não obstante a guerra na Ucrânia ter alterado substancialmente a sua estrutura de custos e benefícios de contexto. Apesar desta contrariedade, ou talvez por isso, é uma excelente oportunidade para refletir sobre aspetos politicamente determinantes para a definição da política de condicionalidade europeia que acompanhará a execução do semestre europeu (SE), os programas nacionais de reformas (PNR) e o programa de recuperação e resiliência ao longo da década. E, desta vez, uma política de condicionalidade europeia que promova, em primeira instância, as Grandes Opções da União Europeia – o pacto ecológico, a transição digital, a reindustrialização, o mercado único de capitais, o pilar social europeu, a coesão territorial, a sociedade colaborativa, os interesses e os valores da Europa no mundo – e não uma mera condicionalidade instrumental à maneira do pacto de estabilidade e crescimento, do tratado orçamental e do semestre europeu. Só assim se evitará o risco sério de transições assimétricas graves para a coesão das economias dos Estados membros, agora muito ameaçadas pelas consequências da guerra na Ucrânia.
Artigo publicado no Jornal de Notícias.
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