Muitas vezes ouvimos a expressão “gosto (ou não gosto) deste estilo de vida”, mas será que alguma vez nós parámos a pensar no que é que esta expressão quer dizer?
O estilo vai para além do que possa ser uma moda ou um capricho. O estilo é uma marca diferenciadora. Prende-se com as minúcias que são aquilo que, em verdade, torna uma coisa diferente de outra, aquilo que faz com que uma coisa apareça como que envolvida num halo especial enquanto outra, por muito semelhante que pareça ser, passa desapercebida perdendo-se no horizonte de indiferença.
É o estilo de um determinado pianista que o torna o intérprete, por excelência, de um determinado compositor; é o estilo de um pintor que involuntariamente aparece na sua obra, sem que esta necessite da sua assinatura para que se reconheça.
Também a vida humana pode ser vivida com estilo, com elegância. Independentemente das adversidades ou facilidades, apesar das circunstâncias que nos rodeiam, existe uma margem, um espaço indeterminado que preenchemos com o nosso modo de reagir ante aquilo que nos acontece. É nesse modo como tomamos as circunstâncias, como reagimos ante o que nos é dado, e também no modo como nos vemos a nós próprios, que consiste o nosso estilo.
Porém, é possível que não nos demos conta da liberdade de que dispomos para configurar a nossa vida. Na pressa, no torvelinho, vivemos a jusante de nós próprios, fantoches de um tempo acelerado, atirados de uma acção para outra irreflectidamente. Assim, deixamos que seja aquilo que nos acontece a decidir o que fazemos de nós. Esta irreflexão é perigosa e facilmente conduz à frustração e ao desalento. Quando isto acontece é urgente arrepiar caminho e tomar as rédeas da nossa vida.
Existem certo tipo de verdades que, introduzindo-se na vida, a fazem mover-se adequadamente, colocam-na em tensão obrigando-a a transcender, são as chamadas verdades da vida. Porém, para nos darmos conta delas, às vezes é necessário parar. A vida é actividade permanente, mesmo quando parece repousar em quietude. Os movimentos interiores não páram. Apaziguá-los requer um treino aturado.
De uma forma muito simples, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset diz-nos que a vida é aquilo que fazemos e aquilo que nos acontece. Dar-me conta de que algo me acontece a mim é, segundo Ortega, o primeiro atributo da vida. O acto de viver vem acompanhado dessa iniludível presença que a vida de cada um tem para si próprio. Este saber-se, este dar-se conta da sua individualidade, não procede de nenhum esforço intelectual, revela-se imediatamente: não somente somos, senão que compreendemos que somos. Por outro lado, a nossa vida coincide com aquilo que fazemos, e isto acarreta uma enorme responsabilidade. A vida depende do modo como decidamos empregá-la e se a empregamos mal podemos destruí-la, em parte ou totalmente.
No entanto, enquanto houver vida existirá dispersão e contradição, mesmo a vida do pensamento contém multiplicidade e discórdia, notas essenciais de tudo quanto vive. Esta contradição vital, assim se lhe poderia chamar, parece ter origem, justamente, na outra nota que configura a vida: o seu inacabamento. Realmente, o facto de ser vida deve-se exactamente a não estar dada de uma vez e por inteiro, a vida é um desenrolar-se, é um processo, um movimento. Por consequência, a vida implica uma tensão para o futuro, um ir mais além de onde se está, um superar-se.
A vida é, portanto, paradoxal: consiste mais no que está em vias de ser e de deixar de ser do que naquilo que se é. Dito de outro modo, a vida é esta consciência de um saber muito incompleto, de um ser que que está em contínua mudança, em vias de tornar-se em algo que ainda não é, um ser que, nas palavras da filosofa espanhola María Zambrano, padece a sua própria transcendência. Daí a inquietude que tão humanamente nos caracteriza, a vontade de se superar, de estar num lugar onde ainda não se chegou, mas com o qual se tem um contacto ainda que precário, uma notícia que pode não ser mais que um vislumbre; a par da incomodidade de sentir-se sem espaço na realidade que parece ser a que no momento se habita. Zambrano sublinha que a sede de transcender se distingue da inquietude pura e simples que considera estéril e que acaba por afundar a vida humana. A sede de transcender apoia-se na realidade e manifesta-se rumo a um horizonte com o qual se possui algum contacto ainda que mínimo.
Este afã de abertura é contrabalançado por uma força de resistência da qual nos apercebemos melhor em situações de insatisfação elevada. Nesses momentos podemos entrever um núcleo de calma, de quietude, que María Zambrano denomina como espécie de raiz da nossa alma. É esta raiz que subjaz à inquietação. É este fundo que nos permite suportar a adversidade e graças ao qual podemos esquecer. O esquecimento, por seu lado, é fundamental para a continuação da vida. A manutenção em presença de tudo o que acontece ou que já aconteceu não deixaria nenhum espaço à surpresa dos instantes vindouros.
Uma vida plena precisa de transparência. Que sejamos capazes de actuar no sentido da transparência, significa possuir capacidade de abertura e de aceitação, por um lado, e de força para resistir por outro. A primeira leva-nos a entrar em acção e movimento ingressando numa contínua transformação; a segunda faz com que nos mantenhamos dentro de um certo cânon ou medida. A vida constitui-se, então, a partir do equilíbrio destas duas forças antagónicas: a actividade que origina uma constante transformação e a conservação de estruturas já existentes. Toda a conservação parece aludir a uma certa forma, a algo estático, algo de que toda a vida, por mais activa que seja, tem necessidade, pois só estando configurada, a vida se torna actuante. O contrário, o informe, é também o inactivo e o estéril; aquilo que não tem nenhuma capacidade de actuação. Por conseguinte, a vida acontece dentro de uma estrutura, uma forma que é condicionadora da sua concreticidade: o estilo.
Talvez seja mais fácil de entender tudo isto fazendo uma analogia com a música. Aquilo que a vida nos dá são as notas musicais que temos para a compor. O modo como as dispomos, a escala musical em que decidimos fazê-lo define o nosso estilo. As circunstâncias, são-nos dadas, nisso não temos poder de intervenção. Mas na forma como reagimos às nossas circunstâncias consiste a nossa liberdade. É neste sentido que se pode entender a afirmação zambraniana de que viver bem não é apenas uma questão de ética, senão de estética. Trata-se, portanto, de uma questão de estilo.
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*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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