PEDALADAS DIVERGENTES
De cada vez que uma autarquia licencia a construção de um prédio de xis andares no casco histórico e antigo ou em zona consolidada de uma vila ou cidade, sem alargar rua ou avenida, onde existia edificação de baixa densidade e volumetria, está a cravar mais um prego no caixão da sustentabilidade e da qualidade de vida futura de quem ali vai viver, trabalhar ou visitar. Muito raramente se prevê zonas verdes e de lazer público em consonância, muito menos de espaços públicos ou privados para acomodar o crescente défice de lugar para estacionar as viaturas advenientes desse tipo de “renovação urbana”.
Enquanto houver um metro quadrado de oportunidade, a “lotta continua”. A ganância é o motor para aprovações generosas. É mais cómodo demolir uma casa antiga e reedificá-la com super fermento especulativo de lucro rápido, do que desenvolver uma área nova de expansão urbana com cabeça tronco e membros, que felizmente as vai havendo com meritória qualidade, quando as coisas se fazem com tempo, bom senso e planeamento equilibrado. O resultado são os engarrafamentos nos acessos, uma poluição atmosférica mortífera, um mar de latas procurando espaço para pousar, um inferno com horas de ponta a ponta, sem descanso, de dia porque é dia, e de noite porque é noite, os donos dormem e as viaturas também.
O pecado original deste caos que se estende de ano para ano está na situação atrás descrita, mas ninguém parece interessado em pôr-lhe um travão para pensar e respirar. Há activistas para tudo, está na moda. Mas não há sinal de manifestação, ninguém se cola às portas de uma câmara municipal a exigir a preservação das zonas centrais das nossas urbes, uma verdadeira reabilitação ao invés de concentração urbana. Da farmácia política surgem remédios drásticos, em nome da visão edílica de “cidades sem carros”, pôr toda a gente a andar a pé, de bicicleta ou transporte público. Era bom que a vida fosse tão simples assim. O argumentário da realidade pesa tanto para um lado como para o outro. É verdade que o tráfico automóvel é o maior responsável pela emissão de gases com efeito de estufa, logo, poluindo o ar que se respira nos meios urbanos. Também é verdade que a bicicleta é o meio de transporte mais simples, económico e ecológico que existe. Num dia sem carros, a poluição atmosférica em Paris baixou 40%.
“Seria interessante saber o que tem feito a Igreja Católica no Algarve para cumprir as orientações do Chefe Supremo”
Durante a pandemia, a emissão de dióxido de carbono diminuiu 7% no planeta, segundo a ONU. Só que não é possível viver indefinidamente em estado de confinamento. E os problemas não se resolvem de um momento para o outro, carregando no botão, ou só porque se exige o impossível. Proibir ou condicionar severamente o acesso de automóveis aos centros urbanos significa dificuldades de abastecimento e, para muitas pessoas, uma quebra radical da sua qualidade de vida, a começar pelos idosos, muitos deles sem vigor para pedalar ou andar, para subir ou descer as colinas, Portugal não é plano como a Holanda, Lisboa não é Amsterdão, Faro não é Sevilha. Colocar-nos todos a andar de metro, combóio ou autocarro significa um encurralamento colectivo, com riscos de transmissão de doenças, uma subjugação do tempo individual aos horários das carreiras. É, acima de tudo, um golpe na liberdade de cada um se deslocar para onde quiser, quando quiser, sem ser sinalizado por um passe de transportes qualquer. Ir para o trabalho ou trazer as compras do supermercado debaixo de chuva ou calor intenso tornar-se-ia bastante mais incómodo para uma parte substancial da população.
Há quem faça do automóvel um ornamento de luxo e de ostentação de riqueza e poder. Há quem cavalgue nele por desporto. Mas a esmagadora maioria dos proprietários dos 5,4 milhões de automóveis que circulam em Portugal usam-nos para efeitos de trabalho a média ou longa distância, ou de lazer a níveis assaz modestos. É bom que tenham consciência disto, e que os direitos da maioria não sejam levados na onda pela vontade de uma minoria, por muito politicamente correcta que se apresente. Que a democracia funcione. A transição energética está em curso. Deve ser acelerada? Deve! Queremos viaturas movidas a electricidade ou outras energias mais limpas? Sem dúvida! Mas, nesta matéria, a Europa lidera pelo (bom) exemplo. Os protestos devem ir-se plantar à frente das embaixadas dos maiores poluidores do planeta, a começar pela China, Estados Unidos, Índia ou Rússia.
A IGREJA CATÓLICA E O TRÁFICO
Há pouco mais de três anos, o Vaticano apresentou publicamente um documento assaz importante designado “Orientações Pastorais sobre Tráfico de Seres Humanos”. Vinha na esteira das posições públicas do Papa Francisco sobre este fenómeno que designou de “”flagelo atroz”, uma “peste aberrante” e uma “ferida aberta no corpo da sociedade contemporânea” que atinge milhões de homens, mulheres e crianças que são traficados e escravizados”.
Nos seus 47 pontos, instava-se a todas as Dioceses, paróquias e congregações religiosas católicas, sem esquecer escolas e universidades, a ter um papel activo quer na prevenção, quer no apoio às vítimas, quer no combate às novas formas de escravatura de que se alimenta este tráfico imundo. Um estranho silêncio abateu-se sobre este documento, que a pandemia não serve como explicação. A desregulação completa do movimento migratório, o êxodo em massa de refugiados da guerra na Ucrânia, só podem ter agravado o número de seres humanos agarrados pelas máfias da exploração.
A prostituição forçada é um dos destinos principais do tráfico de carne humana, mulheres à frente da estatística. Nas estradas, nos bares de alterne, nos prostíbulos informais, tudo continua intocável. As forças de segurança têm outras prioridades, certamente. Seria interessante saber o que tem feito a Igreja Católica no Algarve para cumprir as orientações do Chefe Supremo.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico